Verossimilhança 2

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Retomo o assunto verossimilhança já tratado neste blogue, ampliando-o. Aproveito para falar também da verossimilhança como recurso constitutivo das chamadas fake news.

Verossimilhança diz respeito à adequação entre ficção e realidade; em outras palavras, entre aquilo que é criado pela imaginação e o que efetivamente ocorreu (ou ocorre) no mundo natural. Com base nisso, postula-se que há uma relação estreita entre arte e vida; pois, como sustenta Aristóteles, a arte imita a vida, no sentido de que arte é mímesis, isto é, representação da realidade. Diz-se que uma obra é verossímil quando ela parece não contrariar a verdade.

A palavra verossímil significa exatamente isso: vero (verdadeiro); símil (semelhante) e, mesmo quando uma obra reconstrói pela linguagem um acontecimento real, há a voz do narrador, que filtra os acontecimentos e, valendo-se de estratégias narrativas e discursivas, torna original e criativo aquilo que conta, estimulando a imaginação do leitor.

Verossímil é a propriedade daquilo que parece ser verdadeiro, daquilo que é semelhante à verdade, daquilo que é plausível ou possível de acontecer na realidade. A verossimilhança é, pois, um simulacro de verdade, uma pretensão de se mostrar verdadeiro, na medida em que o verossímil é verdadeiro apenas na aparência. Nas palavras do pensador francês Paul Ricoeur,

A verossimilhança ainda é uma província do verdadeiro, sua imagem e semelhança. É mais verossímil o que considera mais acuradamente o familiar, o comum, o cotidiano, por oposição ao maravilhoso da tradição épica e ao sublime do drama clássico (RICOEUR, 2010, p. 22).

Mia Couto assim começa o conto “O cachimbo de Felizbento”, que faz parte de seu livro Estórias abensonhadas: “Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo, leve de mais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória” (COUTO, 2012, p. 47).

Em uma linguagem poética, o escritor moçambicano faz com que se reflita sobre a oposição ficção versus realidade e, portanto, sobre a questão da verossimilhança: a ficção finge ser verdade, mas ela é contada pela palavra, que é como fumaça, leve demais para se prender ao real. Há, para ele, uma relação simbiótica entre ficção e verdade, pois esta também quer se tornar aquela. Essa mesma relação se manifesta no poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa, em que a dor verdadeira ( “a dor que deveras sente”) se transforma em dor fingida.

Na esfera literária, no entanto, não há que se falar em mentira ou verdade, o que se pode afirmar é que as “mentiras” contadas pelas obras de ficção parecem verdades, produzem efeitos de sentido de verdade, ou seja, as obras literárias ficcionais caracterizam-se pela verossimilhança. No século 17, Cervantes chamava a atenção sobre o caráter verossímil da obra literária no seguinte trecho de sua obra máxima.

… os autores desses livros os escrevem como quem conta mentiras e que, assim, não estão obrigados a se ater a escrúpulos nem verdade, eu responderia que a mentira é muito melhor quanto mais parece verdadeira e agrada muito mais quanto mais tem de ambíguo e possível. As histórias mentirosas devem casar com a inteligência dos que as lerem: tem-se de escrevê-las de forma que, tornando crível o impossível, nivelando os exageros, cativando as almas, surpreendam, encantem, entusiasmem e divirtam, de modo que andem juntas num mesmo passo a alegria e a admiração. E não poderá fazer todas essas coisas quem fugir da verossimilhança e da imitação, porque a perfeição do que se escreve reside nelas (CERVANTES, 2012, p. 580-581).

Cervantes ressalta o caráter ficcional da obra literária. O que ele chama de “histórias mentirosas” é o que se denomina por narrativas de ficção (“escrevem como quem conta mentiras e que, assim, não estão obrigados a se ater a escrúpulos nem verdade”). Embora a matéria da literatura não sejam fatos verídicos, as mentiras que ela conta devem parecer verdadeiras (“a mentira é muito melhor quanto mais parece verdadeira”), ou seja, deve haver verossimilhança externa, adequação ao mundo possível, e verossimilhança interna, ou seja, coerência, fator responsável pelo sentido dos textos, decorrente da reiteração de temas e da recorrência de figuras (“As histórias mentirosas devem casar com a inteligência dos que as lerem: tem-se de escrevê-las de forma que, tornando crível o impossível…”). O autor de Dom Quixote põe em evidência dois princípios aristotélicos para a obra de arte: a mímesis, entendida como imitação das ações humanas, e a verossimilhança, o parecer verdadeiro.

A verossimilhança está ligada a uma estratégia discursiva para fazer parecer verdadeiro aquilo que se enuncia. No início da novela A metamorfose, de Franz Kafka, o protagonista, Gregor Samsa, acorda e se vê transformado num inseto monstruoso.

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o resto do corpo, tremulavam desamparadas diante de seus olhos (KAFKA, 1997, p. 7).

O conhecimento que se tem do mundo diz que não é plausível ir dormir como ser humano e acordar na manhã seguinte “metamorfoseado num inseto monstruoso”. Kafka, no entanto, narra o fato de modo que o leitor acabe por aceitar aquilo como verdadeiro no universo da ficção. O escritor inicia sua novela transpondo o leitor para uma realidade que ele sabe existir somente no universo da ficção, mas isso não impede que aquele que lê aceite a narrativa como verdadeira, dada sua coerência interna e o contrato de ficcionalidade estabelecido entre autor e leitor.

Um outro exemplo nesse mesmo sentido pode ser lido no conto Bobók, de Fiódor Dostoiévski. Numa passagem cujo espaço é um cemitério, várias personagens, todas mortas recentemente e enterradas, conversam entre si. A genialidade dessa narrativa está no fato de que todas as personagens, por estarem mortas, podem falar o que bem entendem, já que a vergonha não atinge os mortos. As personagens representam diversas classes sociais; mas, como estão mortas, as diferenças de classe se anulam e, portanto, todos se igualam; não há entre elas, portanto, qualquer regra ou hierarquia que ponha limites na interação como ocorre no mundo dos vivos.

Episódio semelhante aparece em Incidente em Antares, de Erico Verissimo, em que os mortos saem do cemitério e se instalam no coreto da praça e de lá passam a relatar as ações e comportamentos condenáveis de pessoas ilustres de Antares.

Nos três exemplos citados, há entre autor e leitor um contrato tácito em que o segundo interpreta o narrado como verdadeiro, por saber que se trata de uma narrativa de ficção.  Acrescente-se que o conhecimento do gênero textual, uma novela, um conto e um romance orienta a leitura de A metamorfose, Bobók e Incidente em Antares como obras ficcionais.

A verossimilhança não é exclusiva de obras literárias. Manifesta-se também em textos cujo plano da expressão não é exclusivamente verbal tais como novelas gráficas, filmes, séries televisas, etc. Assim como nas obras literárias, a verossimilhança de um filme (um texto sincrético) deve levar em conta a coerência narrativa (verossimilhança interna) e o gênero (ficção científica, animação, fantasia, terror, etc.).

Em um dos episódios do filme Sonhos (1990), de Akira Kurosawa, um pintor (ou estudante de pintura) está em uma galeria (ou museu) observando vários quadros do artista Vincent van Gogh, ali expostos. Em determinado momento, ao olhar para uma das telas, entra nela e pergunta para algumas mulheres ali retratadas e que estão lavando roupa sob uma ponte onde pode encontrar Van Gogh. As lavadeiras dão a informação a ele, que sai à procura do pintor. Quando se encontram, travam um diálogo enquanto percorrem lugares que podem ser reconhecidos em outras pinturas do artista holandês. O que esse episódio nos mostra é uma bela viagem ao mundo de Van Gogh e às suas obras.

O conhecimento que se tem do mundo mostra que não é passível de ser verdade uma pessoa entrar numa pintura exposta em uma galeria de arte, encontrar-se com o autor da tela e estabelecer conversação com ele. No entanto, esse episódio do filme (e os demais) é verossímil na medida em que faz parte de uma narrativa onírica. O que o filme narra em seus oito episódios são sonhos. O título cria um horizonte de expectativas, contextualizando o que será assistido. Dessa forma, sinaliza ao espectador que a narrativa não se desenvolverá no mundo real, mas no mundo onírico, cuja linguagem é polvilhada de imagens que revelam o inconsciente, razão pela qual é verossímil que se consiga entrar em um quadro do  pintor holandês, voltar à Holanda do século XIX e conversar com Van Gogh.

A verossimilhança não diz respeito apenas à adequação da obra artística ao mundo natural como é conhecido. Se assim fosse, os contos maravilhosos, por apresentarem fadas, bruxas, ogros; as fábulas com seus animais falantes; textos de ficção científica em que terrestres voam para outras galáxias e encontram seres vivos que falam a mesma língua dos terrestres; mortos que narram suas próprias histórias e um ser humano acordar transformado em inseto monstruoso não seriam verossímeis. Em outra obra, Terra e Pacheco destacam que

[…] é preciso observar que a arte cria uma suprarrealidade com suas próprias normas que pode aceitar como verossímeis fatos que, se tomássemos por referência o real, não aceitaríamos como tal. Por outro lado, o conceito de realidade é amplo, abrangendo não somente o mundo natural, mas o mundo criado pela imaginação […] (TERRA; PACHECO, 2017, p. 19 – 20).

A verossimilhança é construção discursiva e diz respeito também a aspectos internos da obra, à linguagem, à estrutura, às figuras, aos temas, à ligação das partes, que vão fazer dela um todo de sentido. Para ser verossímil, não é necessário, portanto, que aquilo que a obra representa tenha um referente no mundo natural (verossimilhança externa), é preciso que o texto esteja articulado de tal forma que o destinatário o aceite como verdadeiro, no universo da ficção, mesmo sabendo ser mentira no plano da realidade.

A verossimilhança não é característica exclusiva de obras artísticas, podendo ser observada em discursos de outras esferas. No caso das fake news, a verossimilhança é fator determinante para que o enunciatário aceite como verdadeiro um texto como mentiroso, por isso esse tipo de notícia se funda na semelhança ao verdadeiro.  A notícia é falsa, mas só prospera se estiver assemelhada ao real, por isso fake news são textos ancorados no real. É preciso destacar que, para uma fake news ser aceita como verdade, não basta que ela seja verossímil. Há entre enunciador e enunciatário um contrato tácito pelo qual o primeiro manipula o segundo para fazer com que o que veicula pareça verdadeiro. A aceitação como verdade pelo segundo, no entanto, não depende apenas da verossimilhança; pois, no caso das fake news, o que é dito tem de ir ao encontro das crenças e valores do enunciatário, o chamado viés de confirmação. Mais importante ainda: o contrato entre enunciador e enunciatário de uma obra literária está assentado em bases bastante diferentes do que as de uma fake news. Na obra literária, a cláusula de ficcionalidade (ou de mentira) é dada e aceita tacitamente. O enunciatário sabe, por esse contrato, que o narrado se passa no domínio da ficção. Além disso, o gênero orienta uma leitura ficcional do texto. No caso das fake news, a cláusula de ficcionalidade inexiste e o gênero simula uma notícia e o pressuposto é que notícia não é ficção, mas fato verdadeiro. É por essa razão que se aceita com tranquilidade e sem qualquer desconfiança que um ser humano vá dormir e acorde no dia seguinte transformado num inseto monstruoso, mas não se aceita, ou pelo menos se desconfia, no caso dos mais ingênuos, que alguém tenha tomado uma dose de vacina e se transformado em jacaré.

Referências

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. vol. 1. Trad. de Ernani Ssó. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

COUTO, Mia. “O cachimbo de Felizberto”. In: COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 47-51.

KAFKA, Franz. A metamorfose. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 2: A configuração do tempo na narrativa de ficção. Trad. de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

SONHOS. Direção de Akira Kurosawa. Los Angeles, Califórnia, EUA: Warner Bros, 1990. 1 DVD, 1990 (119 min).

TERRA, Ernani; PACHECO, Jessyca. O conto na sala de aula. Curitiba: InterSaberes, 2017.

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