Velórios

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Um dos melhores livros de contos da literatura brasileira infelizmente está fora de catálogo desde o fechamento da Cosac & Naify. Trata-se do excepcional ‘Velórios’, de Rodrigo M. F. de Andrade (1898 – 1969), único livro de ficção do autor, publicado pela primeira vez em 1936, pela Amigos do Livro, de Belo Horizonte. Nele, há oito contos cujo tema, como antecipa o título, é a morte. Pedro Dantes (pseudônimo de Prudente de Moares, neto), no prefácio à edição da Cosac & Naify (p. 9), chama a atenção para o fato de que, embora os contos se relacionem pelo tema da morte, no livro, “… o que mais importa não é a morte, mas a vida dos homens” .

A edição da Cosac & Naify (ainda se pode encontrá-la em sebos, a preços nada módicos) apresenta uma excelente Fortuna crítica, com textos de quatro autores que dispensam apresentações, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido.

Não consigo entender por que nenhuma editora não tenha ainda republicado essa obra-prima e por que os contos de Rodrigo M. F. de Andrade não fazem parte de antologias e de livros didáticos. Quem nunca leu Rodrigo M. F. de Andrade não sabe o que está perdendo.

Os oito contos que fazem parte de Velórios são os seguintes:

D. Guiomar

Martiniano e a campesina

Quando minha avó morreu

Seu Magalhães suicidou-se

O enterro de Seu Ernesto

Iniciação

O Príncipe dos Prosadores

O nortista

Abaixo reproduzo o conto Quando minha avó morreu, não por acaso, o meu preferido.

QUANDO MINHA AVÓ MORREU

Quando morreu minha avó paterna eu tinha onze anos. Foi uma fase da infância em que me senti profundamente corrupto, porque vivia consciente de minha impotência para obedecer às normas de retidão que me tinham incutido no espírito. Violava as promessas feitas de noite a Nossa Senhora; mentia desabridamente; faltava às aulas para tomar banho no rio e pescar na Barroca com companheiros vadios; furtava pratinhas de dois mil réis para comprar cigarros que fumava escondido; por fim, cometia outros pecados mais difíceis de confessar.

Por isso mesmo nunca pude ter alegria verdadeira durante esse período. Vivia insatisfeito e inquieto comigo, oprimido pela consciência de minha indignidade.

Isso, porém, não impedia que eu fosse a esse tempo tomado de uma frivolidade delirante. Passava horas preocupado com roupas, sapatos e, em particular, com o cabelo. Penteava-me inúmeras vezes por dia, procurando à força de técnica e de brilhantina erguer na cabeça topetes impressionantes. Trancava-me no quarto para ter plena liberdade de mirar-me no espelho longamente, assumindo atitudes de uma elegância extravagante. Entretanto ninguém percebia em mim essa balda ridícula e absorvente e os dias se passavam sem que nenhum incidente me fizesse emergir do brejo de dissolução moral em que eu vivia mergulhado.

Minha avó morava longe, na fazenda, e só raramente podia nos visitar. Mas procurava sempre manter contato conosco, escrevendo e mandando pequenos presentes com regularidade, porque tinha pena de nós, que éramos os seus netos órfãos. Ela nos tratava com o carinho grave que lhe inspirava a lembrança de meu pai e tinha para mim um encanto meio triste, de que eu nunca me esquecia.

Uma tarde, entretanto, chegou a notícia de sua morte. Fui eu mesmo que a recebi, de um parente com quem me encontrei na praça fronteira à nossa casa. Ela falecera de repente, naquela manhã.

Senti uma necessidade urgente de me esconder. Corri para casa e fui afundar a cabeça no travesseiro, onde principiei a chorar como um perdido. Não era tanto a imagem de minha avó que me ocorria à memória, quanto a voz dela, de que eu sentia uma saudade funda e desesperada. Aquela voz, que exprimia para mim um ideal de mansidão e de ternura, eu procurava ouvi-la como antigamente, e era a ideia de nunca mais escutar-lhe os sons familiares que me apertava o coração mais do que tudo.

Lembrei-me do que me tinham contado sobre a dor que minha avó sentira quando meu pai morreu. Depois, ocorreu-me a impressão do isolamento em que ela devia ter vivido seus últimos anos, na fazenda velha de que não quis se mudar. Imaginei o horror de se morar sozinho naquele casarão sombrio, no meio de uma paisagem sinistra de que eu me lembrava bem. Senti um arrepio de medo à lembrança dos quartos escuros e mal-assombrados, perto dos quais eu passava apavorado da última vez em que fora à fazenda. Com a mesma sensação de medo, recordei o pátio lajeado onde à noite uivavam cachorros magros; o cruzeiro coberto de limo; a senzala abandonada cheia de morcegos; o muro de pedra, escurecido pela umidade; a grade enferrujada do quarto em que meu pai tinha morrido. E eu, que nunca dantes considerara a hipótese de minha avó ser infeliz, acabei me compenetrando de que ninguém poderia ter sido tão desventurado. Isso me fazia soluçar convulsivamente.

Mas, depois, o choro se atenuou à lembrança do carneirinho branco que ela tinha me mandado de presente e do galo de briga que me dera de outra vez. Essas recordações foram me distraindo lentamente, até que uma ideia dominadora se insinuou em meu espírito e dissipou depressa a vaga tristeza que ainda me restava. Lembrei-me de que eu teria de ficar de luto.

Era a minha suprema aspiração desde muito tempo. E a iminência de realizá-la me fez bater o coração de galope.

Eu tinha visto num circo, alguns anos antes, dois artistas de trapézio que ostentavam um laço de crepe no braço. Explicaram-me então – não sei com que fundamento -, que eles estavam de luto pela morte da irmã, vítima de um acidente quando executava um daqueles saltos arriscados em que os dois acrobatas se exibiam. Essa história me impressionou muito. Presumi que a moça fosse bonita e imaginei-lhe a queda espetacular, a curva vertiginosa de seu corpo no espaço, para se despedaçar no picadeiro. Mas o que me impressionou muito mais que esse drama de circo foi propriamente o laço de crepe, que passou a significar para mim o auge da distinção e do requinte.

Depois disso, uns meninos que eu conhecia perfeitamente e sempre me tinham parecido destituídos de qualquer interesse principiaram a me inspirar uma admiração intensa, desde o dia em que os vi de crepe no braço, por motivo da morte de um parente. Lamentei muito não ter nenhuma oportunidade de ornar-me também daquele laço preto. E daí por diante todas as modalidades de luto foram adquirindo para mim, por analogia, mesmo prestígio de elegância. Quanto maior e mais negro luto, mais bonito e mais distinto me parecia.

Assim, à perspectiva de me cobrir de crepe, não demorei a vencer inteiramente a depressão que a falta de minha avó me tinha produzido no espírito. Cessei completamente de chorar. Fiz planos de vestir-me de preto da cabeça aos pés e sair para a rua cumprimentando os conhecidos. Tinha, porém, uma vaga de confiança de que minha mãe talvez não consentisse na que luto tão pesado e procurava quais seriam as objeções dela a meus projetos. O que valia, o que me tranquilizava era a consideração de haver motivo suficiente para o luto. Minha avó tinha morrido. Era um fato incontestável e diante dele minha mãe ria de se submeter. Considerei que luto por avó deveria ser forçosamente pesado. Não poderia se resumir num lacinho qualquer no braço. Tinha de ser um grande luto, um luto de propor condignas. E à medida que planejava vestir-me à altura das circunstâncias, uma excitação imensa foi se apoderando de mim.

Levantei-me da cama em que me tinha estirado, disposto a providenciar imediatamente para fazer face à situação. Abri armários e gavetas pela casa inteira, à procura do que pudesse me convir naquela emergência. Mas não havia em parte alguma roupas pretas, a não ser os próprios vestidos de minha mãe. Achei aquilo um sintoma de imprevidência imperdoável e já murmurava coisas, irritado, quando encontrei afinal uma gravata enorme de seda, pertencente a um vestido à marinheira de minha irmã. Tinha a virtude de ser preta. Contentei-me com ela e defronte do espelho, arranjei em volta do pescoço e sobre o peito uma espécie de plastron, que me pareceu adequado à situação. Feito isso, fui postar-me à varanda, extremamente satisfeito comigo.

A essa hora, a notícia tinha chegado a minha mãe, que saíra cedo em companhia de minha irmã. Avistei de longe as duas que se aproximavam pela praça poeirenta.

Foi minha irmã que percebeu primeiro meu luto fechado.

– Olha Totônio, mamãe!

Ela vinha chorando, com a fisionomia deformada pela comoção. Mas à vista de meu plastron principiou a rir-se.

Eu quis protestar contra aquele riso e impor à menina respeito pelo meu luto:

– Vovó morreu!

Produzi a afirmação com ênfase e olhei para minha mãe, na esperança ainda de que ela me aprovasse. No entanto sua decisão foi peremptória e seca:

– Deixa disso. Tira essa bobagem, menino.

Senti uma humilhação profunda e recolhi-me a um silêncio hostil pelo resto da tarde. Mas não pensei mais em minha avó.

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