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Quando eu era estudante do que corresponderia hoje ao Ensino Fundamental II e Médio, minhas professores (curiosamente todas eram mulheres) nos faziam ler os Sermões do Padre Vieira. Confesso que, para a garotada, os assuntos dos Sermões podiam não ser os mais palpitantes; mas quando eu lia os Sermões do Vieira, ficava encantado sobretudo pela forma como ele usava a língua para comunicar algo. Eu ficava “babando” ao perceber o raciocínio lógico que ele usava para convencer por meio do Sermão. A leitura dos Sermões era uma aula de língua portuguesa e de argumentação.
Hoje, converso com professores de português, que fogem do Vieira como o diabo foge da cruz. Dizem, sem muita cerimônia, que preferem trabalhar com textos mais divertidos, com textos que circulam na internet e acrescentam que Vieira é um autor chato. Quando dizem isso, fico com uma pulga atrás da orelha achando que eles, na verdade não devem ter lido o Vieira.
É evidente que devemos apresentar aos estudantes textos atuais, que fazem parte do mundo deles, mas isso não significa que textos bons de outras épocas devem ser jogados na lata do lixo.
Certa vez, o escritor e psicanalista Contardo Calligaris, numa entrevista ao programa Roda Viva, contou que um leitor escreveu para ele dizendo que não concordava com as ideias que ele expressava nos textos que ele publicava em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo. Contardo respondeu ao leitor: “Que bom. É isso mesmo. Eu também leio principalmente aqueles autores que têm posições diferentes das minhas, pois é tomando contato com ideias diferentes das minha que eu aprendo”. Essa coisa de só se dar ao aluno textos que ele está cansado de ver no seu dia a dia e que falam exatamente aquilo que eles pensam e gostam é muito pouco enriquecedor. Os alunos têm de ler também textos sérios e que falam de coisas que não estão acostumados a ler no Facebook.
Fiz essa longa introdução apenas para justificar por que hoje trago aqui um trecho de um Sermão do Vieira, proferido em 1672, cuja leitura nos pode comover e ensinar passados 347 anos. Segue o início do Sermão. Caso se interesse em lê-lo na íntegra, basta procurar na internet, pois é texto que está em domínio público.
SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZA
EM ROMA, NA IGREJA DE S. ANTÓNIO DOS PORTUGUESES
ANO DE 1672
Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverentis.(*)
(*) Lembre-te, homem, que és pó, e em pó hás de converter-te.
O pó futuro, em que nos havemos de converter é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? A resposta a essa dúvida será a matéria do presente discurso.
Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer; outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura veem-na os olhos, a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, veem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o veem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es? Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que estes olhos que veem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es? Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo. A Igreja diz-me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente? O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. Para que eu acerte a declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos aproveitar deste tão importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi exceção deste pó, se digne de nos alcançar graça. Ave Maria.
Os textos são objeto de comunicação entre sujeitos. O sermão é um texto que se vale da linguagem verbal, ou seja, da palavra. Por ser objeto de comunicação estabelece um diálogo entre o pregador e os fiéis. Por meio dos textos, atuamos sobre os outros. Isso significa que objetivamos que o ouvinte (ou o leitor, se for um texto escrito) aceite o texto que produzimos e que creia nele. E mais: queremos do ouvinte (ou do leitor) uma resposta, que ele faça ou deixe de fazer algo (ria, compre, doe, assista, converta-se etc.), o que significa que todo texto, em maior ou menor grau, se caracteriza pela persuasão.
Embora na linguagem comum não costumamos fazer distinção entre convencer e persuadir, alguns estudiosos da argumentação distinguem um de outro. Segundo Perelman e Olbrechts, para aqueles que têm em mente o objetivo da ação discursiva, “persuadir é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação”. Esses autores sustentam que a persuasão é a argumentação “que pretende valer só para um auditório particular”, ao passo que convencer é a argumentação “que deveria obter a adesão de todo ser racional”.
Meu comentário. Costumo fazer uma distinção objetiva entre convencer e persuadir, considerando que convencer é levar alguém a crer em algo e que persuadir vai um pouco além, pois objetiva que a pessoa faça algo. Desse ponto de vista, entendo que na persuasão há finalidades pragmáticas e no convencimento, finalidade epistêmica, ou seja, relativa ao conhecimento.
O discurso publicitário tem finalidades persuasivas: não se objetiva apenas que o destinatário creia, objetiva-se que aja, comprando o produto, por exemplo. Evidentemente, há as chamadas propagandas institucionais em que a intenção não é vender um produto em si, mas reforçar a empresa ou instituição, visando persuadir o público de que se trata de empresa ou instituição comprometida com valores desejáveis socialmente, criando dessa forma uma imagem positiva junto aos consumidores. Um exemplo seria o de propagandas em que se veicula que se trata de empresa que respeita o meio ambiente.
Aplicando o que foi falado até agora ao texto de Vieira, tem-se que Sermão da Quarta-feira de Cinzas é um texto verbal resultante do arranjo de palavras e frases que remetem a um sentido. Por ele, o autor do Sermão comunica algo ao público (os ouvintes, os fiéis). Como todo texto, o sermão exerce uma função comunicativa.
Dentre as várias palavras que aparecem neste trecho do Sermão de Vieira, uma se destaca: pó. Se você contar, verá que ela ocorre 38 vezes, sendo 32 em português (pó) e 6 em latim (pulvis, pulverem). Além dessa, há outras, espalhadas ao longo do texto: Igreja, olhos, sepulturas, sepulcros, cinzas, epitáfios. Essas palavras, ao mesmo tempo que designam a elementos que existem na realidade objetiva (note que são palavras concretas), remetem a conceitos, a ideias. A palavra Igreja, por exemplo, remete ao conceito de fé; olhos, a percepção. Palavras como sepulturas, sepulcros, cinzas, epitáfios e pó remetem ao tema da morte.
O autor do Sermão não está apenas comunicando algo, ele pretende também que o ouvinte (ou o leitor) acredite no que ele diz, que aceite seu texto como verdadeiro; portanto, além de comunicar, ele visa também a convencer, etapa necessária para que o ouvinte (ou o leitor) realize algo, ou seja, o autor do Sermão visa também persuadir o seu público. Em síntese, o texto percorre três etapas: comunicar, convencer, persuadir.
Para alcançar esses objetivos, é necessário que o texto apresente coerência, ou seja, que o texto constitua um todo de sentido. A coerência resulta da reiteração de ideias e da recorrência de palavras que remetem a essas ideias. No sermão de Vieira, ela decorre da manutenção do tema da morte, revestido por expressões espalhadas pelo texto que remetem a esse tema, com destaque para a figura pó.
Como o próprio título indica, trata-se de um texto pertencente ao gênero sermão, que se insere no discurso religioso e, nesse contexto, deve ser lido. O sermão é um exemplo típico de texto argumentativo, sua função é convencer por meio de argumentos logicamente encadeados, podendo valer-se também de exemplos. Observe, no texto de Vieira, os exemplos de papas que também se tornaram pó. O argumento central é: se vemos que as pessoas morrem, inclusive os papas, não há qualquer razão para duvidar de que vamos morrer também, não há como não saber que nos tornaremos pó. O que o sermão de Vieira pretende responder não é o que nos acontecerá no futuro (nos tornaremos pó), mas por que, mesmo vivos, somos pó.
A resposta a essa questão exigiria a leitura integral do Sermão de Quarta-feira de Cinza. O trecho lido é apenas a introdução, que no gênero sermão recebe o nome de exórdio. Caso queira, você poderá ler o sermão na sua íntegra. Como afirmei, está disponível na internet.
Deixo um comentário final. O sermão é o que se denomina de discurso autorizado, pois quem o profere é dotado de autoridade para fazê-lo. Não é sem razão que o padre fala do púlpito, um lugar mais alto do que o ocupado pelos fiéis. A força persuasiva do sermão vai além do que se diz e de quem diz, pois aquele que fala, o padre, é uma voz que ecoa uma voz maior, mais poderosa, mais sábia. Para aqueles que creem, a voz do padre é a voz de Deus.
PS.: Os trechos citados de Perelman e Olbrechts-Titeca foram extraídos do livro Tratado de argumentação: a nova retórica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005 e se encontram nas páginas 30 e 31. No meu livro, Práticas de Leitura e escrita, Editora Saraiva, 2019, trato desses assuntos com mais detalhes.
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Meu preferido ainda é o Sermão da Sexagésimos, mas gosto bastante do da Quarta-feira de Cinzas (os três textos). Vale lembrar que são pedidos no vestibular da Unicamp!
Muito bom receber seus textos, Ernani!
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Bem lembrado,Maria Alice. Realmente o da Sexagésima é o sermão dos sermões do Vieira.