Tempo de leitura: 6 minutos
O bebê de tarlatana rosa, de João do Rio, é um dos melhores contos brasileiros, cuja história se passa no período carnavalesco. No livro, O conto na sala de aula, que escrevi em parceria com Jessyca Pacheco, comentamos esse conto e o reproduzimos na íntegra. Aqui, falarei dele rapidamente.
Em O bebê de tarlatana rosa, um narrador instala no texto uma personagem, Heitor de Alencar, que narra a própria história, ocorrida em um carnaval no Rio de Janeiro no mesmo ano em que os fatos são narrados, como se pode observar por este trecho: “Eu mesmo este ano tive uma aventura…”. Este ano significa o ano em curso. Há, portanto, uma defasagem temporal pequena entre o narrar (enunciação) e o narrado (enunciado), de sorte que Heitor pode contar com riqueza de detalhes o acontecimento, já que ele é recente.
Heitor conta que, no carnaval, saiu com alguns companheiros e, depois de percorrer alguns salões, foi ao baile público do Recreio, onde sente que uma foliona vestida de bebê de tarlatana (um tipo de tecido leve de algodão) rosa se roçava nele. Reparando nela, notou que tinha um nariz postiço. Heitor dá um beliscão no bebê e abandona o local para ir com os amigos a um baile em lugar mais refinado. No domingo, reencontra o bebê e este lhe dá um beliscão, retribuindo o que recebera de Heitor no Recreio.
Heitor não vê o bebê na segunda. Na terça, às três da manhã, carnaval acabando, não tendo ainda encontrado um par que satisfizesse sua luxúria, encontra, andando pela cidade, mais uma vez o bebê. Pergunta a ele se está esperando alguém e, frente à resposta negativa, propõe que o bebê vá com ele e atreve-se a dar-lhe um beijo. O bebê recua, deixando Heitor louco. O bebê insistia: Aqui não. Heitor passa os braços na cintura do bebê e sai andando com ele. Excitado, chega a uma rua escura, onde aperta ainda mais a foliona e propõe irem à casa dela, o que ela recusa. Heitor, mesmo na rua, aperta-a e beija-a. Na aproximação física, sente seu nariz roçar no nariz postiço da foliona e pede que ela tire o nariz, mas ela nega, dizendo que depois é difícil de colocar. De repente, Heitor arranca o nariz postiço do bebê e vê uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz. Larga imediatamente a mulher horrorizado, enquanto o bebê chorava, pedindo perdão e dizendo que não tinha culpa, pois fora Heitor quem quisera. Heitor a sacode e tem vontade de cuspir nela, de bater nela, quando ouve um apito do guarda e sai correndo como um louco. Quando chega em casa, vê que sua mão apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tarlatana rosa.
No vídeo abaixo, Antônio Abujamra interpreta o conto de João do Rio.
Como está claro desde o início do conto, os fatos narrados ocorreram durante o carnaval e duraram exatamente os quatro dias dos festejos, que são chamados por Heitor de “quatro dias paranoicos”, terminando na madrugada de quarta-feira de cinzas. A passagem do tempo é marcada por expressões linguísticas, como as que estão em destaque nos seguintes trechos: “No primeiro dia, no sábado, andamos de automóvel […]”; “Mas no domingo, em plena avenida, […] senti um beliscão […]”; “e segunda-feira não o vi também”; “Na terça desliguei-me do grupo […]”; “Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas”.
O que caracteriza os textos narrativos é a temporalidade, isto é, os acontecimentos se sucedem na linha do tempo. Quando falamos em temporalidade, é preciso distinguir: a) o tempo dos acontecimentos, que pode ser passado, presente ou futuro e b) a passagem do tempo, marcada por expressões adverbiais, como as que destacamos acima.
Quanto ao espaço, temos a cidade do Rio de Janeiro. Sobre esse elemento, destacamos dois aspectos: 1) a ancoragem da narrativa a lugares reais do Rio de Janeiro, como “Recreio”, “rua de S. Jorge”, “largo do Rocio”, “rua Leopoldina”, “edifício das Belas Artes”, “rua Luís de Camões”, confere um sentido de realidade ao texto; 2) embora, no momento da narração, Heitor relate os fatos em um espaço fechado, reclinado em um divã, os acontecimentos narrados ocorrem em espaços abertos, as ruas do Rio de Janeiro.
O bebê de tarlatana rosa se constrói sobre o tema da luxúria, revestido por figuras relativas ao comportamento lascivo, relacionadas aos festejos carnavalescos: “transportes da carne”, “desejo”, “vagalhão de volúpia”, “prazer da cidade”, “íncubos”, “depravação”. Quanto ao bebê, encontramos figuras como “rostinho atrevido”, “dois olhos perversos”, “boca polpuda como se ofertando”, “voz arfante e lúbrica”, “bestial desejo”.
Todas essas figuras subsumem-se em uma arquifigura, o carnaval, na medida em que não só reveste o tema da luxúria, como também figurativiza o tempo da luxúria. No carnaval, as coerções sociais que cerceiam os instintos são atenuadas e a busca do prazer sexual dos sujeitos se manifesta com maior intensidade, como se o carnaval fosse a época da libertinagem. Observe a fala do bebê: “Só no Carnaval é que eu posso gozar”. Há uma tonificação dos desejos para assinalar o transbordamento das paixões nessa época como fica evidente em: “Não há quem não saia no Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias”.
A satisfação dos instintos reprimidos que se liberam no carnaval está associada a figuras que remetem ao sórdido, àquilo que é considerado baixo, marginal, escondido, como atestam as figuras “maxixes mais ordinários”, “gente ordinária”, “fúfias”, “acanalhar-se”, “enlamear-se”, “ruelas lôbregas”, “maiores crimes”, “rua, escura e sem luz”. Heitor, embora possa frequentar ambientes mais luxuosos, por ser um homem de posses, vai buscar o prazer em lugares escondidos e “mal frequentados”. O prazer é buscado no baixo, no escondido. Gozar é descer a essas profundezas.
Outra figura-chave do conto e que se associa ao carnaval é a máscara. Se nessa época há a busca da satisfação dos instintos, a máscara favorece o alcance desse intento, por esconder o sujeito, apagando-o como figura social, passível de sanções. No caso do bebê, a máscara era a única formar de possibilitar-lhe a realização do desejo lascivo.
O conto trata, em seu nível mais profundo, da oposição /luxúria v. temperança/, que engloba a oposição /pulsões individuais v. coerções sociais/. Negam-se a temperança e as coerções sociais e afirmam-se a luxúria e as pulsões individuais, que no conto são valorizados. No entanto, é preciso observar que essa liberação de instintos tem duração efêmera, o tempo do gozo, pois, como diz a letra de uma canção popular, “Amanhã tudo volta ao normal”.
PS: a pessoa sem nariz aparece também num conto genial de Gogol, chamado O nariz. Trata-se de uma narrativa fantástica de um sujeito que, de repente, se vê sem o nariz e sai a procurá-lo.