Trabalhar feito um mouro

Tempo de leitura: 3 minutos

Por Ernani Terra ©

Quando era aluno de Letras na USP,  o texto Linguística e Poética, de Roman Jakobson era leitura obrigatória.  Nele, o linguista russo fala da função poética da linguagem, aquela em que a mensagem se volta para a própria mensagem, para seu aspecto sensível. Ao contrário da função referencial, que se volta para o referente, aquilo que se diz, quando se usa a função poética estamos mais voltados ao como se diz do que ao que se diz.

O nome sugere que essa função é característica da poesia. Realmente, a poesia se caracteriza pelo cuidado com o plano da expressão do texto, por meio de recursos como o ritmo, a sonoridade, as rimas e especialmente a linguagem simbólica. Jakobson, no entanto, nos alerta para o fato de que ela é constitutiva de vários tipos texto e cita um famoso slogan de campanha presidencial norte-americana: I LIKE IKE, que chama a atenção pela sonoridade e pelo fato de que em LIKE está contido tanto o sujeito I quanto o complemento IKE. Anúncios publicitários também se valem da função poética como recurso de persuasão. O slogan MELHORAL, MELHORAL, É MELHOR E NÃO FAZ MAL fica martelando na cabeça da gente e, tanto martela que dá dor de cabeça e lá vamos nós correndo à farmácia comprar… o que mesmo? Claro, Melhoral. O slogan é um achado e vejam que, na palavra MELHORAL,  está contida a palavra MELHOR.

Vejam o que ocorreu comigo. Vivia postando no Facebook que estava trabalhando muito. Ninguém reagia. Claro! Estava dizendo a coisa mais comum do mundo. Afinal, a maioria das pessoas que trabalha, trabalha muito. Por que essa mensagem chamaria a atenção de alguém? Estava dizendo o que todos dizem e com as mesmas palavras.

Certo dia, em vez de escrever que estava trabalhando muito, escrevi que estava TRABALHANDO FEITO UM MOURO. Foi como se, de repente, ocorresse um terremoto. Na hora começaram a chover reações. As pessoas começaram a se manifestar. Alguns demostraram solidariedade, outros acharam engraçado. A mensagem provocou respostas as mais variadas. Por que as pessoas ficavam indiferentes à mensagem ESTOU TRABALHANDO MUITO e reagiram à mensagem ESTOU TRABALHANDO FEITO UM MOURO, se com ambas eu dizia a mesma coisa?

A resposta é a tal função poética da linguagem do Jakobson. Em vez de usar uma expressão corrente, que as pessoas estão cansadas de ouvir e que, portanto, não chama mais a atenção de ninguém, usei uma menos usual (diria até pouco usual, no Brasil). Pimba! A expressão despertou a atenção, acendeu uma luzinha na mente do leitor. O uso da comparação “feito um mouro” disparou um alarme sonoro e tirou o leitor da inércia. Deve ter passado na cabeça das pessoas: será que os mouros trabalham muito mesmo? Por que ele se compara a um mouro? Ele é descendente de mouros? Ou até mesmo: que é um mouro? Enfim, a mensagem chamou a atenção pelo novo, que não é nada novo, por sinal. Essa expressão nos remete ao tempo em que os mouros foram expulsos de Portugal e os que ficaram tiveram de trabalhar muito, feito escravos, além do que eram segregados, pois só podiam praticar sua fé em alguns lugares chamados de mouraria. Enfim, é uma expressão do tempo dos Afonsinhos, ou seria do tempo do Onça?

3 Comentários


  1. Uma verdadeira aula agora. Minha filha que acabou de entrar na primeira série do ensino médio ficou encantada. Entendeu perfeitamente.

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