Tempo de leitura: 3 minutos
A finalidade do blogue, como afirmo em seu subtítulo, é “um espaço para falar de língua e literatura”. O texto que comento hoje, embora não costume ser classificado como literário (trata-se de uma letra de canção popular) é literatura pura, por isso falo dele nos parágrafos que seguem.
Uma das canções mais conhecidas da nossa música popular é Ronda, de Paulo Vanzolini (1924 – 2013). Há várias gravações sempre na voz de uma mulher. Ficaria mesmo estranho a interpretação por um homem, já que o eu que fala na letra da canção é uma mulher.
Todos conhecem a letra (por via das dúvidas, reproduzo-a ao final do artigo) e também coloco um link para o Youtube onde poderão ouvir Ronda na magistral interpretação da cantora Márcia. Em resumo, a letras diz o que segue.
Uma mulher sai à noite pelas ruas procurando pelo “amado”. (“De noite eu rondo a cidade / a te procurar”). Tudo leva a crer que o amado seja da boemia e mulherengo, pois a mulher o procura nos bares, onde supõe que ele esteja se divertindo em companhia de outras mulheres (“Bebendo com outras mulheres,/Rolando um dadinho,/ Jogando bilhar”).
Apesar de procurá-lo com insistência e não encontrá-lo, ela não desiste, e retorna para casa abatida e desencantada. Sua alegria é sonhar com amado. Mas ela é paciente e, mesmo que digam para desistir, porque a busca é inútil, ela não desiste (“Desiste, essa busca é inútil / Eu não desistia”).
É uma Penélope às avessas. Enquanto a mulher de Ulisses ficava em casa tecendo, à espera da volta do marido, nossa heroína moderna sai de casa todas as noites à procura do amado.
Pausa.
Até aí vai se construindo a imagem da mulher dependente do homem, que não pode viver sem ele, da mulher que é um nada e, para ser alguém, tem de encontrar aquele que a abandonou. A expectativa é que ela, encontrando-o, implore por sua volta.
Outra pausa.
Não. Ela não é nada disso. Não quer voltar para ele, não é a mulher pacata que chora o abandono.
É a mulher que ronda a cidade sem se cansar para encontrar o amado numa noite num bar e acabar com ele, matando-o e todos vão saber que essa Medeia moderna vingou aquele que a abandonou, pois quando isso acontecer os jornais estamparão:
CENA DE SANGUE NUM BAR NA AVENIDA SÃO JOÃO.
Cai o pano!
Essa letra é toda magnífica, mas o que eu gosto mais é a trapaça que Vanzolini faz com a gente. Vamos ouvindo a letra que parece apontar para um final e ele subverte essa expectativa, com um final surpreendente.
Perfeita!
Ronda
De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar.
No meio de olhares espio,
Em todos os bares
Você não está…
Volto pra casa abatida,
Desencantada da vida.
O sonho alegria me dá:
Nele você está.
Ah, se eu tivesse
Quem bem me quisesse,
Esse alguém me diria:
“Desiste, esta busca é inútil”.
Eu não desistia,
Porém, com perfeita paciência
Volto a te buscar.
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres,
Rolando um dadinho,
Jogando bilhar
E neste dia, então,
Vai dar na primeira edição:
Cena de sangue num bar
Da Avenida São João.
Segue o link para ouvir Ronda na interpretação de Márcia.
Link permanente
Só para ser do contra, eu gosto mais da canção com Maria Betânia. É linda!
Link permanente
Sim, é uma belíssima interpretação, a da Bethânia.
Link permanente
Forte!