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Os pronomes pessoais exprimem as pessoas do discurso pura e simplesmente. Designam o enunciador, a 1ª pessoa, quem fala, e o enuncitário, a 2ª pessoa, a quem se fala, portanto os pronomes pessoais não têm como referente algo do mundo natural, mas algo construído no e pelo discurso. Lembremos: eu é aquele que diz eu. Esses pronomes são, portanto, dêiticos, como vimos em outro post.
O pronome ele refere-se à não pessoa. Designa aquilo ou aquele de que se fala. A gramática, no entanto, considera a 3ª pessoa como uma pessoa do discurso. Note que a 3ª pessoa é diferente da 1ª e da 2ª, pois apresenta flexão de gênero (ele/ela), o que não ocorre com a 1ª e a 2ª. Os pronomes pessoais de 3ª pessoa, ele e ela, fazem o plural como a maioria das palavras da língua, pelo acréscimo da desinência -s (eles/elas).
Os pronomes pessoais assumem outras formas quando empregados na função de complemento. As gramáticas fazem essa distinção, classificando os pronomes pessoais como retos, quando empregados na função de sujeito, e oblíquos, quando na função de complemento. Embora a gramática tradicional condene o uso de pronomes retos na função de complemento, é comum, mesmo na variedade prestigiada socialmente, construções como Chamei ele e Convidei ela.
No português brasileiro, observa-se uma simplificação do quadro dos pronomes pessoais em relação ao que estabelece a gramática tradicional. A 2ª pessoa do plural (vós) caiu em desuso e o emprego da forma tu, da 2ª pessoa, está restrito a algumas regiões do país. A forma mais usada hoje no Brasil em referência à 2ª pessoa do discurso é você.
Vejamos agora o emprego da forma de 1ª pessoa do plural (nós), atentando para o fato de que a oposição eu vs. nós não deve ser entendida como uma oposição singular vs. plural, mas como oposição entre pessoa estrita (o eu) e pessoa amplificada (o nós). Veja que o fato de usarmos palavras diferentes (eu e nós) é suficiente para demonstrar que o pronome eu não admite a pluralização.
Observe a frase que segue extraída do livro O cérebro no mundo digital, de Maryanne Wolf (Editora Contexto):
Você está no limiar de minhas palavras; juntos, estamos na passagem para mudanças galácticas que vão ocorrer em poucas gerações.
O nós, implícito na forma verbal estamos, engloba enunciador (eu) e enunciatário (você, o leitor presumido). O adjetivo juntos não deixa a menor dúvida de que esse nós representa eu + você”: “[…] juntos, [eu e você], estamos na passagem para mudanças galácticas que vão ocorrer em poucas gerações”. Como nesse nós o enunciador inclui o enunciatário, ele é chamado de nós inclusivo. Seu emprego cria um efeito de sentido de proximidade e cumplicidade do enunciador para com o enunciatário. Trata-se de um ótimo recurso que o enunciador usou para manipular o enunciatário, fazendo-o crer seu cúmplice. Além disso, o uso do nós inclusivo cria um efeito de sentido de reversibilidade do discurso, ou seja, reforça seu caráter dialógico.
Existe também o nós exclusivo. Nesse caso, há a presença do enunciador (eu), mas não do enunciatário (tu/você). O nós exclusivo resulta da junção do eu com a não pessoa (ele, eles), criando um grupo de pessoas. Quando alguém diz, por exemplo, “Em julho, minha mulher e eu tiramos férias e nós tomamos a decisão de fazer uma viagem de carro por Minas Gerais. Como não conhecíamos ainda as cidades históricas, aproveitamos para visitar Ouro Preto, Mariana, Tiradentes”.
Nessa frase, o pronome de 1ª pessoa do plural (nós) designa uma pessoa amplificada, que corresponde a junção do enunciador (eu) e ela (a mulher dele).
Em resumo: o nós inclusivo resulta da junção de eu + tu (você); o nós exclusivo decorre da junção da 1ª pessoa (eu) com a não pessoa (ele/ ela). No nós inclusivo, quem sobressai é o tu, ao passo que no nós exclusivo o que se sublinha é o eu.
Chamamos a atenção sobre um uso do nós frequente em trabalhos escolares, particularmente em textos argumentativos e expositivos. Nesse tipo de produção textual, não é de bom tom que a redação seja feita na 1ª pessoa do singular (eu), mesmo que o trabalho seja feito por uma única pessoa. O recomendado é que se use a 3ª pessoa, o que confere um sentido de impessoalidade e de subjetividade ao texto. Normalmente, é uma 3ª pessoa seguida do pronome se.
Outra forma muito comum em trabalhos escolares é usar o nós no lugar do eu. E o chamado plural de autor ou de modéstia. Veja exemplos no quadro a seguir.
A categoria pessoa em trabalhos escolares
3ª pessoa + SE | Plural de autor |
Nesta dissertação, discute-se… | Nesta dissertação, discutimos… |
O que se apresenta como exemplo é… | O que apresentamos como exemplo é… |
Analisaram-se vários exemplos de… | Analisamos vários exemplos de… |
Objetiva-se mostrar que | Objetivamos mostrar que |
Conclui-se que… | Concluímos que… |
Como as duas formas (verbo na 3ª pessoa + se e plural de autor) se equivalem, é indiferente usar uma outra, observando-se que, escolhida uma delas, deve-se mantê-la em toda a redação do trabalho. O que não se deve fazer é misturar as duas formas num mesmo trabalho.
Por fim, como se pode observar pelos exemplos que apresentamos de plural de autor, não é necessário explicitar o nós uma vez que ele fica implícito na desinência do verbo (-mos).
Esse e outros assuntos são tratados em nosso livro Língua portuguesa: desenvolvendo competências de leitura e escrita a ser lançado brevemente pela Editora Saraiva.