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Quando estava no que seria hoje o Ensino Fundamental II, li pela primeira vez o conto Plebiscito, de Artur de Azevedo (1855-1908). Perdi a conta de quantas vezes na vida reli esse conto, porque, como constava nos livros escolares, podia lê-lo todas as vezes que quisesse. Acho muito improvável encontrar uma pessoa da minha geração que não tenha lido essa pequena obra-prima.
Plebiscito tem características de um conto dramático, na medida em que o narrador dá voz a personagens que, por meio de diálogos, nos dão conhecimento da ação. A propósito, Artur de Azevedo – irmão de Aluísio de Azevedo (autor de O cortiço e O mulato) – além de contista, foi importante dramaturgo.
Em linhas gerais, o conto mostra a transformação de um estado de não saber para um estado de saber. O menino está disjunto de um objeto a que atribui um valor (um saber: o que significa a palavra plebiscito, que lera no jornal) e incumbe o pai de um dever-fazer, por pressupor que o pai tem esse conhecimento e pode transferi-lo. Entretanto, ao pai falta a competência necessária para executar a ação proposta pelo filho, porque ele também está disjunto desse saber, embora finja possuí-lo. Temos então, com relação ao pai, uma mentira, já que a aparência está em contradição com a essência. Para não ter a mentira revelada, isola-se no quarto, onde, por sorte, encontra um dicionário, objeto em que está investido o saber de que precisa para dar a resposta ao filho. De posse desse saber, transmite-o aos demais membros da família. Dessa forma, sanciona a si mesmo positivamente por crer ter cumprido o contrato.
As considerações que apresentei estão muito longe de transmitir a beleza dessa pequena obra-prima de nossa literatura. Se ao menos, eu consegui despertar o seu interesse em ler (ou reler) o conto, ganhei meu dia. Aos que querem se deliciar com o conto reproduzo-o na íntegra a seguir e aproveito coloco um link para um vídeo em que o saudoso Antônio Abujamra fez uma leitura impecável do conto de Artur de Azevedo.
Plebiscito
A cena passa-se em 1890. A família está toda reunida na sala de jantar. O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade. Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga. Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias. Silêncio. De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: — Papai, que é plebiscito?O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.O pequeno insiste: — Papai? Pausa: — Papai? Dona Bernardina intervém: — Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal. O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. — Que é? que desejam vocês? — Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito. — Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito? — Se soubesse, não perguntava. O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito! — Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. — Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? — Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito. — Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante! — A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!... — A senhora o que quer é enfezar-me! — Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber! — Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado. — Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira! — Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças — Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho. O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada: — Mas se eu sei! — Pois se sabe, diga! — Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo! E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário... A menina toma a palavra: — Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar!Dizem que é tão perigoso! — Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito! — Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes. — Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito! Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto: — Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco. O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço. — É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!... A mulher e os filhos aproximam-se dele. O homem continua num tom profundamente dogmático: — Plebiscito... E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição. — Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios. — Ah! — suspiram todos, aliviados. — Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!... Abaixo link para o vídeo. https://www.youtube.com/watch?v=egIIOMkyLBg
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Esse meu coleguinha de escola… Vai ser bão assim, lá em casa.
Ps.: fizemos juntos somente o pré-primário. Depois …, nem te conto.
Aliás, Ernani, nós não “fizemos” juntos. Nós “estudamos” juntos.
Explico melhor: meu sogro que Deus o tenha, pessoa de alta complexidade humorística durante a vida, usava o verbo fazer para designar pequenos furtos, a que se dedicou, muito bem humoradamente, a vida toda. Nãos era ladrãozinho, não. Dava aos mais necessitados e aos amigos mil vezes mais do que o produto dos seus “fazeres”.
Ele falava para os netos: esse chaveirinho ( a loja percebia, mas como ele comprava bem, ignorava) vovo “fez”, se referindo a uma loja em Miami. E, dava o tal chaveirinho a um dos netos. Tudo em meio a muitas risadas misturadas com falsas broncas dos demais parentes.
Coisas boas da vida.
Abraço e parabéns pelo blog.
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Valeu, Marco. Bons tempos. Um abraço.