Reflexões sobre a paciência

Tempo de leitura: 4 minutos

A gente espera do mundo, e o mundo espera de nós /Um pouco mais de paciência” (Lenine)

Li há algum tempo os 4 volumes do Livro das mil e uma noites, traduzido diretamente do árabe por Mamede Mustafa Jarouche, publicados pela Editora Globo (Houve um relançamento recente pelo selo Biblioteca Azul, clique aqui). Sherazade conta suas histórias todas as noites para quê? Simplesmente para afastar a morte, que é sempre adiada porque a aurora chega e o fio da história é suspenso para ser continuado na noite seguinte e assim por 1001 noites.

Como a boneca russa matrioska, ela vai enfiando um conto dentro do outro para a que a vida continue. A narrativa é forma de afastar a morte. Isso é mágico, como tudo no livro, a começar pelo número do título: 1001, número simbólico do infinito. Mil são incontáveis noites, mas são mil mais uma, portanto algo que remete àquilo que não acaba, a algo que se prolonga no tempo. 1001 não é apenas a soma de cardinais, é um número que está entre a coleção de unidades e o todo que as transcende. São infinitas noites que nos permitem afastar a morte pela narrativa.

Há no livro várias histórias de que gosto, mas o espaço só me permite falar de uma. Escolho ‘O faminto’, contada durante as noites 166, 167 e 168, no episódio ‘O sexto irmão do barbeiro’ e resume-se no seguinte.

O irmão do barbeiro está à procura de algo para saciar a fome e chega a uma bela casa e pergunta sobre o morador. É informado de que pode entrar que o dono da casa o receberá. O visitante diz ao dono da casa que está faminto e este então o convida para ser seu comensal. O anfitrião pede aos criados que tragam uma bacia com água para que façam suas abluções. Os criados fingem trazer a bacia e o dono da casa finge se lavar. Pede que o faminto também se lave na bacia invisível e o faminto finge lavar-se. O dono da casa pede em seguida que comecem a trazer a comida. Os criados simulam trazer as mais finas iguarias que o dono da casa finge provar e oferece ao faminto, que finge comê-las também. Depois de serem servidos vários pratos invisíveis e o dono da casa e o faminto simularem comer, o último diz ao primeiro que está satisfeito. O anfitrião diz que ele ainda deve comer os doces e pede aos criados que tragam os doces. Finge saboreá-los no que é imitado pelo faminto que, tendo o estômago doendo pela fome, diz que já está satisfeito. O anfitrião diz que ainda não beberam e pede aos criados que tragam jarras dos mais deliciosos vinhos. Mais uma vez finge beber e o faminto o imita. Nesse momento, o anfitrião interrompe a farsa e diz ao faminto que, após procurar por muito tempo, encontrou um homem que tem a nobre qualidade da paciência e convida o faminto a morar no palácio e lhe dá agora comida de verdade e nunca mais na vida o faminto passou fome.

As histórias do Livro das mil e uma noites me ensinaram muita coisa e a história do faminto, em particular, me ensinou que, mesmo no sofrimento, temos de ter paciência, suportar o adverso e confiar no tempo. A paciência é uma competência de um sujeito que sabe e pode ficar, em princípio, indefinidamente, na situação de espera. Mas o que o sujeito paciente espera? Sem dúvida, algo que se encontra no futuro, portanto a paciência tem uma dimensão temporal. O futuro que ele espera está numa dimensão distensa e, portanto, o paciente rejeita uma dimensão tensa de futuro, característica da ansiedade. Se pensarmos em termos de andamento, o sujeito paciente nega a aceleração (valor negativo) e afirma a desaceleração (valor positivo). Em outras palavras, ele rejeita a velocidade e preserva a duração. Ter paciência é saber esperar. Mais do que saber e poder ficar em situação de espera, o paciente pode querer ficar na situação de espera, já que pode encontrar prazer na própria espera.

Ter paciência é entrar em conjunção com o tempo, naquilo que ele tem de contínuo, de durativo; com um tempo que flui naturalmente, sem interrupções ou sobressaltos. Entrar em conjunção com o tempo é entrar em conjunção com a vida.

Fechando o círculo que se abriu na epígrafe de Lenine, a paciência tem um lado intersubjetivo. Esperamos que o mundo seja paciente conosco, mas devemos nos obrigar a ser pacientes com o mundo.

PS.: A história do faminto é contada com o desfecho que contei por Raduan Nassar em Lavoura Arcaica.

4 Comentários


  1. Ave, Ernani! Texto soberbo! E olha que sou ariana, impaciente por definição… Fiquei com vontade de reler Sherazade… <3

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