O que é literatura?

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Essa é uma daquelas perguntas simples, mas difíceis de responder. A professora Leyla Perrone-Moysés, na apresentação de seu livro Mutações da literatura no século XXI,  afirma:  “Fala-se em literatura como se todos soubessem do que se trata. Mas na verdade não existe um conceito de literatura, mas acepções que variam de uma época a outra” (PERRONE-MOYSÉS, 2016, p. 7-8). Às palavras de Perrone-Moysés, poderíamos acrescentar que as acepções variam também de um estudioso para outro e de um quadro teórico para outro.

Alguém poderia dizer que literatura é a arte da palavra. Essa resposta, em vez de facilitar, complicaria ainda mais, pois teríamos de responder a uma outra questão também difícil de responder: O que é arte?.

Dizer que a diferença entre um texto literário e um não literário consiste no fato de que o primeiro pertence ao domínio da arte nos coloca em um círculo vicioso e não resolve o problema, pois definir uma obra como arte é tão problemático quanto definir um texto como literatura. Tanto arte quanto literatura são conceitos abertos, isto é, trata-se de acepções que não podem ser definidas por um conjunto fechado de propriedades necessárias e suficientes. Dizer que arte é o que manifesta o sentimento do belo também parece não resolver o problema, pois continuaríamos ainda dentro do círculo vicioso, pois teríamos de responder à pergunta: O que é o belo? Em síntese,  as respostas para  a pergunta O que é literatura? serão diferentes em função da época, da perspectiva teórica e do critério adotado.

Quanto ao critério adotado para se dizer que uma obra é literatura, encontramos, de modo geral, critérios da ordem do imanente, isto é, relativos à obra em si, e critérios da ordem do transcendente. Nesse último, recorrem-se também a fatores exteriores à obra, como seu contexto sócio-histórico, o gênero que pertence, quem é o autor e quais suas crenças e ideologias, etc., a fim de classificar uma obra como literária.

Se o critério adotado for de ordem imanente, diremos que o que faz com que um texto seja considerado literário é sua linguagem especial, que a diferencia da linguagem da literatura da linguagem ordinária, como exemplifica o trecho a seguir.

Se a batida do Ceará é uma rapadura diferente, a batida de minha avó Nanoca é para mim coisa à parte e funciona no meu sistema de paladar e evocação, talqualmente a madeleine da tante Leonie. Cheiro de mato, ar de chuva, ranger de porta, farfalhar de galhos ao vento noturno, chiar de resina na lenha dos fogões, gosto d’água na moringa nova – todos têm sua madeleine. Só que ninguém a tinha explicado como Proust – desarmando implacavelmente, peça por peça, a mecânica lancinante desse processo mental. Posso comer qualquer doce, na simplicidade do ato e de espírito imóvel. A batida, não. A batida é viagem no tempo. Libro-me de sua forma, no seu cheiro, no seu sabor. Apresentam-se como pequenas pirâmides truncadas, mais compridas do que largas, lisas na parte de cima, que veio polida das paredes da fôrma, e mais áspera na de baixo, que esteve invertida e secando ao ar, protegida por palha de milho. Parecem lingotes da mina de Morro Velho, só que o seu ouro é menos  mineral, mais orgânico e assemelha-se ao fosco quente de um braço moreno. Seu cheiro é intenso e expansivo, duma doçura penetrante, viva como um hálito e não se separa do gosto untuoso que difere do de todos os açúcares, pela variedade de gama do mesmo torrão, ora mais denso, ora mais espumoso, ora meio seco, ora melando – dominando todo o sentido da língua e ampliando-se pela garganta, ao nariz, para reassumir qualidade odorante, e aos ouvidos, para transformar-se em impressão melódica. Para mim, roçar os dentes num pedaço de batida é como esfregar a lâmpada de Aladim – abrir os batentes do maravilhoso. (NAVA,  2005:, p. 26-7)

O texto de Nava é uma sequência descritiva dentro de um gênero narrativo (as memórias do autor). O narrador, nesse caso, coincide com o próprio autor. Não se trata, pois, de texto ficcional. Apesar disso, o narrador não se limita a transmitir para o leitor uma descrição fria e objetiva do doce; pelo contrário a descrição é forma de trazer à memória as lembranças da infância.

Pela linguagem, o narrador presentifica as sensações e lembranças passadas e, como em Proust, com o qual o texto dialoga, redescobre o tempo pela memória. Se para o narrador de Em busca do tempo perdido, foram as madeleines de tia Leonie que lhe permitiram mergulhar no passado; para o narrador de Baú de ossos, foram as batidas da avó Nanoca ( “A batida é viagem no tempo“). Assim, como em Proust, a descrição do doce se faz por um processo de desmontagem peça a peça. Mas o que se desmonta? Não só o doce, mas a própria memória.        

A descrição não se atém ao gustativo; pelo contrário, a organização textual se faz pela referência a outras sensações evocadas pelo doce: visuais (“pequenas pirâmides truncadas, mais compridas do que largas“); táteis (“lisas na parte de cima […] e mais áspera na de baixo“), olfativas ( “Cheiro de mato“, “Seu cheiro é intenso e expansivo“, “viva como um hálito“, “para reassumir qualidade odorante“) e até mesmo auditivas (“ranger de porta, farfalhar de galhos ao vento noturno, chiar de resina na lenha dos fogões“, “aos ouvidos, para transformar-se em impressão melódica“). Isso tudo só é possível porque, para o narrador, o doce tem um componente mágico (mais uma vez a relação intertextual, agora com a lâmpada de Aladim, do Livro das mil e uma noites), que lhe permite abrir as portas de um mundo que agora só existe na memória.

A leitura desse trecho mostra que o literário não se prende necessariamente ao ficcional. Por outro lado, a verdade do literário não é a verdade histórica, objetiva, mas a verdade vista pelo olhar do artista. O próprio Nava afirma que “o memorialista é uma forma anfíbia dos dois [o ficcionista e o historiador] e ora tem de palmilhar as securas desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua interpretação” (NAVA, 2001, p.173).

O tratamento dado à linguagem no fragmento lido, por si só, bastaria para enquadrá-lo no domínio do literário. Se acrescentarmos que se trata de um trecho da obra Baú de ossos, de Pedro Nava, o maior memorialista brasileiro, alguém que ainda pudesse estar em dúvida se o que acabamos de ler é ou não literatura, com essas informações já não teria dúvidas de que a esfera discursiva do trecho é a do literário. Leiamos agora outro texto.

A viagem

– Como foi de segunda lua de mel?

– Quer mesmo saber?

A viagem desde o início arruinada pela companhia sabe de quem.

Rabiscava as iniciais em toda sagrada coluna de templo grego.

Murchou a delícia do mais carnoso figo siciliano.

Converteu o vinho francês da melhor safra em vinagrão azedo.

E o pior é que, sempre juntos, nem podia rezar que o avião dele caísse.

Intencionalmente, omitimos, neste momento, o autor do texto, porém o indicamos nas referências deste artigo.

Numa primeira leitura, sem maiores informações que permitam contextualizar o texto, não seria de estranhar que alguém pudesse ter dúvidas em classificá-lo como literário. Considerando os gêneros literários tradicionais (romance, conto, novela, poema, etc.), também não é simples classificá-lo como literatura. Não é um romance, porque é curto demais; não é poema, porque não está escrito em versos. Seria um conto?

Apresentamos a seguir algumas informações que permitem contextualizar o texto. Seu autor é o conhecido contista brasileiro Dalton Trevisan, vencedor do Prêmio Camões, o mais importante prêmio de literatura em língua portuguesa. O texto é um conto incluído no livro O anão e a ninfeta, classificado em primeiro lugar na categoria contos e crônicas da 10a. edição do Prêmio Portugal Telecom.

Com base nessas informações, alguém poderia afirmar que se trata efetivamente de um texto literário. Isso comprova que, muitas vezes, a classificação de um texto como literário é feita com base em fatores contextuai.

Afirmar que um texto é literário porque seu autor é, por exemplo, Pedro Nava, Dalton Trevisan, Machado de Assis ou Shakespeare, é recorrer a um critério exterior ao texto. Classifica-se como literatura não pelo texto em si, por sua linguagem pelo tratamento dado ao tema, pelo seu caráter não utilitário, mas por critérios que transcendem ao próprio texto. Em geral, levam-se em conta, além do reconhecimento do  autor, o gênero e/ou os discursos que legitimam a obra como literária. Esses discursos legitimadores são, em essência, a crítica literária, a academia, os intelectuais, a comunidade de leitores, etc. A escola afiança e reverbera essa legitimação.

Entendemos que o trabalho com literatura na escola não deve se restringir à alta literatura, aos clássicos, ao cânone literário. A escola deve também fazer circular a literatura dita popular e ainda aquilo que se convencionou chamar de paraliteratura, de literatura de massa, ou ainda de literatura de consumo. Por quê? Simplesmente porque a leitura desses textos não canônicos possibilitará aos estudantes criar seus próprios parâmetros de gosto. Nenhum leitor literário começou lendo Kafka, Proust, Virginia Woolf, Faulkner, Guimarães Rosa, Clarice Lispector…

Para formar o leitor literário, é fundamental que os estudantes sejam estimulados não só a manifestar o que entenderam dos textos, mas também a exprimir juízos de valor acerca deles. O gosto se aprende e se apura com as práticas de leitura.

Obs.: Esse tema, entre outros, é tratado em nosso livro Leitura do texto literário, publicado pela Editora Contexto. Mais informações, clique no link abaixo.

Referências

NAVA, Pedro. Baú de ossos. 11ª ed. Cotia, SP: Ateliê, 2001.

PERRONE-MOYSÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

TREVISAN, Dalton. O anão e a ninfeta. Rio de Janeiro: Record, 2011.

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