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No último post, Mataram a beata, a partir de uma notícia de um jornal português, tecei alguns comentários sobre as diferenças entre o português brasileiro e o europeu. Como alguns leitores me pediram para falar um pouco mais sobre o tema, retomo o assunto.
A ideia de uma língua única, que não se altera, é um mito, pois a heterogeneidade social e cultural implica a heterogeneidade linguística.
Há línguas que são comuns a várias nações. No caso do português, ela é língua comum a diversos Estados soberanos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. É importante ressaltar que, exceto Portugal e Brasil, os demais são Estados relativamente recentes, já que até o século passado eram colônias ultramarinas portuguesas. O Timor Leste foi colônia portuguesa até 1975, mas, quando se viu independente de Portugal foi tomado pela Indonésia, só alcançando sua autonomia em 1999. Os dados do quadro a seguir apresentam a população desses países.
País | População |
Angola | 28.830.000 |
Brasil | 207.700.000 |
Cabo Verde | 539.560 |
Guiné-Bissau | 1.816.000 |
Moçambique | 28.830.000 |
Portugal | 10.320.000 |
São Tomé e Príncipe | 199.000 |
Timor Leste | 1.999.000 |
Embora Brasil e Portugal tenham uma língua comum, é nítido a qualquer falante do português que existem diferenças entre o português falado nos dois países. Claro que elas também existem com relação aos demais países de língua portuguesa. Neste post, abordo somente as diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil. Essas diferenças são tão grandes que podemos afirmar que no Brasil se fala uma língua diferente da de Portugal, que os linguistas denominaram de português brasileiro. Isso é tão evidente que, se você observar um processador de textos, o Word, por exemplo, na ferramenta idiomas, há as opções português e português brasileiro ou português (Brasil). Por quê? Como são línguas diferentes, o corretor automático do processador precisa saber em que “língua” está sendo escrito o documento, pois o português europeu e o brasileiro seguem regras diferentes.
Quando ouvimos um habitante de Portugal falando, percebemos imediatamente um uso diverso da língua. A diferença mais perceptível é de ordem fonológica, ou seja, na maneira de produzir os sons da língua. Identificamos rapidamente que ele fala português, porém com “sotaque ou acento lusitano”. Se atentarmos com mais cuidado, perceberemos, entretanto, que as diferenças não são apenas de ordem fonológica. Há também diferenças sintáticas (poucas) e lexicais. Um mesmo conceito é designado por significantes diferentes, o que prova o caráter imotivado do signo linguístico.
Certas diferenças lexicais chegam a ser curiosas. Por exemplo: em Portugal, autoclismo significa descarga; retrete quer dizer privada, vaso sanitário. Imagine a estranheza de um brasileiro ao ouvir um português dizendo que vai “carregar no autoclismo da retrete”.
A propósito, o escritor e dramaturgo Mario Prata, que viveu alguns anos em Portugal, escreveu um livro muito interessante chamado Schifaizfavoire – Dicionário de português, em que arrola inúmeras palavras utilizadas em Portugal que para nós, brasileiros, soam extremamente engraçadas.
Ainda com relação às diferenças lexicais existentes entre o português brasileiro e o de Portugal, basta lembrar que nosso léxico contém inúmeras palavras que não são usadas em Portugal. Vocábulos de origem indígena e africana, como maloca, acarajé, jerimum, macumba, vatapá, abadá etc., muito comuns para nós, não são tão comuns para os portugueses, uma vez que a língua falada por eles, por razões históricas, não recebeu contribuições dos povos indígenas e africanos.
Nos quadros a seguir arrolo algumas diferenças entre o português brasileiro e o europeu.
DIFERENÇAS DE PRONÚNCIA | |
Brasil | Portugal |
econômico | económico |
fenômeno | fenómeno |
gênero | género |
fêmea | fémea |
olfato | olfacto |
onipotente | omnipotente |
guichê | guiché |
fêmur | fémur |
sêmen | sémen |
bônus | bónus |
dezesseis | dezasseis |
dezessete | dezassete |
terremoto | terramoto |
metrô | metro (é) |
beijo | (baijo) |
favor | (favoire) |
Diferenças de pronúncia é que justificam o fato de, no português brasileiro, palavras como econômico, fenômeno e bebê receberem acento circunflexo em decorrência de a vogal da sílaba tônica ter pronúncia fechada e, no português europeu, receberem acento agudo, uma vez que possuem pronúncia aberta. Em “olfato” e “olfacto” e “onipresente” e “omnipresente” não há apenas diferença gráfica, mas também fonológica, já que as letras c e m dos encontros ct e mn são pronunciadas. Em “baijo” e “favoire”, a grafia é a mesma, beijo e favor, respectivamente. O que muda é a pronúncia.
DIFERENÇAS SINTÁTICAS | |
Brasil | Portugal |
Estou trabalhando. | Estou a trabalhar. |
Me encontrei com João. | Encontrei-me com João. |
Cheguei na escola. | Cheguei à escola. |
Encontrei ele. | Encontrei-o. |
Me interesso por você. | Interesso-me por si. |
A tendência no português do Brasil é a colocação dos pronomes oblíquos átonos antes do verbo. Lembrando que construções como “Me encontrei com João”, “Cheguei na escola” e “Encontrei ele” não são prescritas pelas gramáticas normativas, que estabelecem que, nesses casos, deve-se seguir a norma lusitana.
DIFERENÇAS LEXICAIS | |
Brasil | Portugal |
abridor | tira-cápsulas |
açougue | talho |
aeromoça | hospedeira de bordo |
apostila | sebenta |
arquivo (de computador) | ficheiro |
banheiro | casa de banho |
café da manhã | pequeno almoço |
calcinha | cueca |
câncer | cancro |
cardápio | ementa |
celular (telefone) | telemóvel |
conversível | descapotável |
criança | miúdo |
dentista | estomatologista |
descarga (de banheiro) | autoclismo |
elevador | ascensor |
esparadrapo | penso rápido |
estacionar | aparcar |
fila | bicha |
freio (do carro) | travão |
gari | almeida |
geladeira | frigorífico |
gol contra | autogolo |
goma de mascar | pastilhas elásticas |
grampeador | agrafador |
impedimento (no futebol) | fora de jogo |
levar ao fogo | levar ao lume |
lugar | sítio |
maravilhoso | bestial |
meias | peúgas |
mouse | rato |
multa | coima |
ônibus | autocarro |
pedestre | peão |
ponto (de ônibus) | paragem |
presunto | fiambre |
privada, vaso sanitário | retrete |
salva-vidas | banheiro |
secretária eletrônica | atendedor automático |
sorvete | gelado |
tela | ecrã |
terno | fato |
trem | comboio |
usuário | utente |
vestiário | balneário |
xícara | chávena |
O Acordo Ortográfico de 1990 eliminou algumas diferenças ortográficas. Antes do Acordo, em Portugal grafavam-se as consoantes não articuladas, o que não ocorria na norma brasileira. Ressaltamos que, embora o Acordo estipule a eliminação das consoantes não articuladas, na prática elas continuam sendo largamente usadas, já que, em Portugal, há uma enorme resistência em se adotar as modificações propostas pelo Acordo Ortográfico.
DIFERENÇAS ORTOGRÁFICAS ANTERIORES AO ACORDO | |
Brasil | Portugal |
adjetivo | adjectivo |
adoção | adopção |
ativar | activar |
atual | actual |
batizar | baptizar |
coletivo | colectivo |
elétrico | eléctrico |
fator | factor |
fatura | factura |
inspeção | inspecção |
letivo | lectivo |
ótimo | óptimo |
projeto | projecto |
reação | reacção |
refletir | reflectir |
Dado que há diferenças entre o português de Portugal e o português brasileiro, e levando-se em conta que as gramáticas tradicionais tomam por base também autores lusitanos, a diferença existente entre a norma-padrão e o uso efetivo que os brasileiros fazem da língua, mesmo na variedade culta, é cada vez mais acentuada.
Nesse instante, cabe uma pergunta formulada pelo professor Celso Cunha em seu livro Uma política do idioma: “Será admissível a hipótese de que Portugal nos cedeu a utilização do idioma e, por isso, dele deve ter para sempre o controle normativo?”.
A resposta é óbvia: é claro que não deve pertencer a Portugal o monopólio do controle normativo da língua, pois, como vimos, as diferenças entre o português falado em Portugal e no Brasil são tão grandes que podemos, com segurança, afirmar que o Brasil não só alcançou sua independência política em relação a Portugal como também já, há muito, alcançou sua independência linguística. Só não alcançamos ainda nossa independência normativa. Nesse sentido, Noel Rosa já afirmava na letra do samba Não tem tradução:
Tudo aquilo que o malandro pronuncia, / Com voz macia, / É brasileiro, já passou de português.
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