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No final do ano passado, estive em Manaus, participando do Festival Literário dr Manaus (Flim), em que proferi a palestra O papel social do escritor. Posteriormente escrevi um artigo sobre esse mesmo tema na revista Meer. Abaixo segue o texto do artigo
O escritor desempenha um papel social e atua para corresponder às expectativas do leitor, que não é um sujeito passivo e homogêneo; pelo contrário, o público literário, que é heterogêneo e multifacetado, vive a literatura, dando a ela novas leituras. Mesmo o escritor cuja obra é marcada pela subjetividade (penso aqui nos que escrevem poesia lírica), desempenha um papel social relevante, trabalhando em benefício da sociedade, pois falando de seu eu mais recôndito canaliza suas experiências pessoais para um nós, a sociedade.
Quando se fala em função social do escritor, é comum que se simplifique a questão e se pense em literatura engajada, expressão que está meio fora de moda. Essa expressão foi cunhada por Jean-Paul Sartre no final da década de 1940 para designar uma forma de expressão literária em que o autor, por meio de sua obra, manifestasse engajamento em problemas sociais de naturezas diversas, tratando de temas relevantes para a sociedade, como desigualdade, injustiça, entre outros. Nessa forma de literatura, o papel social do escritor é promover mudança social, ou pelo menos, provocar a reflexão crítica sobre problemas sociais. A função social do escritor seria conscientizar para o problema e levar a uma ação que vise a uma transformação social.
Trata-se uma literatura que implica uma tomada de posição, um ativismo literário. Como disse, o termo literatura engajada ficou fora de moda, hoje falamos em literatura empenhada ou em literatura comprometida, termo usado pelo crítico palestino Edward Said para designar um tipo de literatura voltada explicitamente para problemas sociais, como racismo e homofobia, entre outros.
A literatura comprometida normalmente costuma ser vista por oposição a um tipo de literatura dita de entretenimento, aquela que se lê para passar o tempo, para se distrair, para se divertir. Algumas pessoas consideram que, nesse tipo de literatura, o escritor não excerce nenhum papel social, ou, se exerce, é um papel irrelevante ou menos nobre, porque a obra que produz faz parte do que se convencionou chamar de cultura de massa. Segundo alguns, na literatura de entretenimento, o escritor não estaria exercendo o papel social de instigar o leitor à ação, caracterizando-se como uma forma de escapismo e, por extensão, de alienação. O escritor de literatura de entretenimento, em princípio, abriria mão de preocupações sociais produzindo um tipo de obra que, para satisfazer um grande número de consumidores, se abstém de procedimentos que fujam ao gosto médio, insistindo em modelos já consagrados.
Insisto em que, tanto na literatura dita comprometida, aquela explicitamente de caráter social, quanto na de entretenimento, o escritor exerce um papel social. Na primeira, a de engajar o leitor a uma proposta de mudança social; na segunda, o papel social de entreter, de distrair o leitor, de proporcionar a ele relaxamento, distensão. E mais importante: a literatura não se esgota numa visão simplista e maniqueísta: literatura comprometida de um lado versus literatura de entretenimento de outro lado; em autores preocupados e engajados em mudanças sociais e autores voltados apenas para uma literatura de entretenimento. Há muitos tons de cinza entre esses dois polos e um não exclui necessariamente o outro.
Pensemos em Balzac, sua obra literária contribuiu para o surgimento da Sociologia e teve contribuição decisiva na construção do pensamento político do século 19. Marx chegou a afirmar que A comédia humana contribuiu mais para sua compreensão da sociedade francesa do que muitos manuais de economia, história e filosofia que tinha lido. Seu parceiro, Engels, corroborando essa ideia, afirma que aprendeu com Balzac mais do que aprendeu com todos historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período.
Considerar a literatura de entretenimento como menos nobre é uma visão míope, por três motivos:
1. Mesmo na literatura comprometida, o autor exerce uma função social, que é a de entreter o leitor. Lembremos que, em Balzac, Dostoievski e Machado de Assis, há também o propósito de entreter o leitor. É claro que a leitura desses autores não se esgota no entretenimento, na medida em que abre a percepção do leitor comum para problemas sociais, éticos, morais, existenciais.
Lembro-me da primeira leitura que fiz de Crime e castigo quando era bem jovem. Li avidamente a obra de Dostoievski como um romance policial meio diferente dos que estava acostumado a ler porque já me foi dado saber, logo de início, quem era o assassino. Só mais tarde é que percebi que Crime e castigo trata de questões existenciais profundas e está a uma distância infinita dos romances policiais à moda de Georges Simenon e Agatha Christie.
2. Ressalto que há literatura de entretenimento de qualidade. Em muitas obras desse tipo, o autor, ao mesmo tempo que exerce a função tão necessária do entretenimento, desperta a atenção crítica do leitor, para problemas sociais.
3. Com a dita literatura de entretenimento, o autor exerce uma função social importantíssima, que é formar leitores. Nesse sentido, não se pode deixar de destacar a função essencial que exercem os escritores de literatura infanto-juvenil. Os leitores de literatura de proposta não começaram sua vida de leitores literários lendo Proust, Joyce, Kafka, Faulkner, Guimarães Rosa, mas lendo romances de aventuras, como Os três mosqueteiros, O conde de Monte Cristo, e romances policiais ao estilo de Conan Doyle e Agatha Christie. Em matéria de literatura, todos sonham ser uma Virginia Woolf, um Dostoievski ou um Balzac, ninguém almeja ser um Alexandre Dumas ou uma Agatha Christie. Trata-se de um preconceito porque é da massa de leitores de Dumas e Agatha Christie que surgirão os leitores der Kafka, Balzac, Faulkner