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A ideia de um sujeito como única fonte de sua fala é uma quimera. Todo texto, falado ou escrito, dialoga com outros. No discurso de um sempre estará presente o outro, ou seja, todo discurso é marcado pela heterogeneidade, uma vez que é condição do discurso se constituir em relação a outro com o qual mantém uma relação contratual (de concordância), ou polêmica (de refutação). Como todo discurso traz em si a presença do outro, ele se caracteriza por ser a reunião de diferentes vozes, que podem estar mostradas ou não no texto. A essa pluralidade de vozes que constituem os discursos, damos o nome de polifonia, palavra formada a partir de dos elementos de composição, provenientes do grego, poli-: várias, muitas e fonia: voz. O contrário de polifonia é monofonia (mono = uma; fonia= voz), portanto um discurso monofônico é aquele em que o enunciador apaga a presença do outro, não deixando sua voz emergir. A heterogeneidade discursiva pode ser constitutiva ou mostrada.
A heterogeneidade constitutiva, também chamada de dialogismo, revela uma propriedade essencial da linguagem humana, que é o fato de todo discurso se construir a partir de outros discursos. Esse tipo de heterogeneidade não está explicitado no texto, ou seja, não é localizável na cadeia do discurso. Aquilo que o texto afirma se constrói a partir de um ponto de vista que refuta ou adere. Quando alguém, por exemplo, num texto, defende a descriminalização do aborto, seu discurso refuta um outro discurso, o que sustenta que o aborto é crime. Há entre esses dois discursos uma relação polêmica.
A heterogeneidade mostrada diz respeito a outras vozes manifestadas e presentes no texto, portanto localizáveis na cadeia do discurso. Localizar essas vozes é essencial para a construção do sentido. Ocorre que, muitas vezes, o leitor não identifica as referências a que o texto faz porque lhe falta o conhecimento enciclopédico, o que, evidentemente, acarretará baixa compreensão do que lê.
Nos parágrafos que seguem, discuto a letra de uma conhecida canção brasileira da década de 1970, de autoria de João Bosco e Aldir Blanc chamada O mestre-sala dos mares. Há dela várias gravações, as mais conhecidas são as de Elis Regina e a de João Bosco. A letra que se ouve nelas apresenta algumas palavras alteradas pelos compositores em relação à letra original, em virtude da censura, o que tornava muito difícil ao ouvinte da canção perceber as referências a outros discursos.
A letra de O mestre-sala dos mares faz referência a um episódio da História do Brasil conhecido por A Revolta da Chibata, liderado por um militar da Marinha brasileira, filho de ex-escravos, chamado João Cândido, conhecido como Almirante Negro. O movimento foi uma revolta dos marinheiros contra os castigos que lhes eram aplicados que incluíam até o uso da chibata como forma de sevícia, embora essa prática já tivesse sido proibida.
Não sou historiador, nem professor de História, por isso recomendo a quem quiser saber mais sobre esse episódio que consulte os bons livros de História do Brasil. Me aventurei a falar sobre isso apenas para tornar mais claras as mudanças que os compositores foram obrigados a fazer na letra original.
Na interpretação de Elis, ouvimos os seguintes versos já no início da canção:
Há muito tempo nas águas
Da Guanabara
O Dragão no Mar reapareceu
Na figura de um bravo
Feiticeiro
A quem a história
Não esqueceu
Conhecido como
Navegante negro
Tinha a dignidade de um
Mestre-sala
E ao acenar pelo mar
Na alegria das regatas
Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por
Batalhões de mulatas
As palavras trocadas pelos compositores, a mando dos censores, são feiticeiro e navegante. Na letra original as palavras eram, respectivamente, marinheiro e almirante.
Reproduzo a seguir a letra inteira com as palavras originais. Observem a referência explícita a João Cândido, o ALMIRANTE Negro, bravo MARINHEIRO, líder da Revolta da Chibata.
Há muito tempo nas águas
Da Guanabara
O Dragão no Mar reapareceu
Na figura de um bravo
Marinheiro
A quem a história
Não esqueceu
Conhecido como
Almirante negro
Tinha a dignidade de um
Mestre-sala
E ao acenar pelo mar
Na alegria das regatas
Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por
Batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam
Das costas
Dos santos entre cantos
E chibatas
Inundando o coração,
Do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro
Gritava então
Glória aos piratas, às
Mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça,
Às baleias
Glória a todas as lutas
Inglórias
Que através da
Nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais.
Os censores, no entanto, não perceberam que os autores, ao usarem a expressão Dragão do Mar, também faziam referência a personagem de nossa História. O Dragão do Mar é uma referência ao jangadeiro cearense e abolicionista Francisco José do Nascimento, que na letra da canção ressurge na baía da Guanabara na figura de João Cândido, o Almirante Negro.
A composição de João Bosco e Aldir Blanc tem um casamento perfeito entre letra e música e pode ser usada pelos professores de História e de Língua Portuguesa em suas aulas, num trabalho conjunto e interdisciplinar.
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