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Em meu último post, apresentei breves considerações sobre o conto, destacando suas características por comparação a outro gênero narrativo, o romance, e chamei a atenção para o fato de que o conto é uma narrativa breve (short-history), podendo ser lido numa sentada. Essa característica faz do conto um gênero bastante adequado para ser lido em situações escolares. Neste artigo, continuo no tema, desta feita destacando o papel do conto (e da literatura) na escola.
Vivemos em uma sociedade semiocrática, pois a cultura contemporânea tem seu foco na leitura de imagens, de textos verbais e sincréticos, presentes no cotidiano, no jornal, na publicidade, na televisão, nas redes sociais, na escola. Há uma hipertrofia da visão que tende levar o indivíduo a uma posição passiva, tornando-o um voyeur na sociedade do espetáculo, transformando pessoas em sujeitos de consumo. Mas essa atividade silenciosa tem outro polo, pois o indivíduo pode transformar o que lhe é lhe dado e escrever no texto do outro, deixando nele sua marca. Ler (um conto, uma imagem, um filme) é uma forma de apropriação do texto alheio, que transformamos em nosso por instantes. Ler então é forma de escapar da passividade.
Sempre defendi que a escola deve trabalhar a pluralidade de gêneros textuais-discursivos, mas que a leitura literária deve ser privilegiada, pois se trata de leitura modelar e, afinal, quem pode ou mais pode o menos. A BNCC confirma isso, como se pode observar pelo trecho da Base abaixo transcrito.
“Em relação à literatura, a leitura do texto literário, que ocupa o centro do trabalho no Ensino Fundamental, deve permanecer nuclear também no Ensino Médio. Por força de certa simplificação didática, as biografias de autores, as características de épocas, os resumos e outros gêneros artísticos substitutivos, como o cinema e as HQs, têm relegado o texto literário a um plano secundário do ensino. Assim, é importante não só (re)colocá-lo como ponto de partida para o trabalho com a literatura, como intensificar seu convívio com os estudantes.”
De fato, o que se observava um trabalho que focava mais o contexto da obra literária (contexto histórico, biografia de autor, características de estilo de época etc.) do que a leitura literária. As aulas de literatura acabavam se transformando em aulas de História da Literatura. É preciso sempre colocar a leitura do texto literário como o núcleo das aulas de Literatura.
Uma das grandes preocupações de professores e educadores tem sido o baixo desempenho escolar no que se refere à leitura de textos. As dificuldades de estudantes para construir sentidos perpassam por todas as fases da escolarização e é perceptível até mesmo no ensino superior. Professores universitários têm reportado que muitos alunos chegam aos bancos das faculdades com dificuldades para a construção de sentido, mesmo para textos simples, muitas vezes não conseguindo identificar a ideia central e relações de sentido entre segmentos textuais. A queixa, ressalte-se, não é exclusiva dos professores que atuam nas áreas de língua portuguesa. Docentes de outras áreas também têm manifestado preocupação com o baixo índice de compreensão de textos de seus alunos, o que acarreta pouco aproveitamento na disciplina e, em muitos casos, desistência do curso já́ nos primeiros semestres.
O baixo desempenho dos estudantes no que se refere à leitura decorre de que não lhes foi apresentado, durante seu percurso escolar, um aparato teórico-metodológico que possibilitasse torná-los leitores proficientes. Na disciplina língua portuguesa, tanto no ensino fundamental, quanto no médio, enfatizavam-se, sobretudo, aspectos linguístico-gramaticais em que se toma a frase como objeto do estudo, relegando a um segundo plano, o discurso em ato. Há duas décadas exatamente, com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), bons ventos assinalavam uma mudança de perspectiva. Uma delas é que se deveria privilegiar o estudo da língua com base nos gêneros do discurso, na perspectiva da escola de Genebra, de tradição bakhtiniana (“tipos relativamente estáveis…”). Louvável, sem dúvida. Na prática, em grande parte dos casos, o que se observou foi que, na didatização dos gêneros, privilegiou-se a forma e não a função, resultando num modelo classificatório de estudo dos gêneros, o que vai de encontro à perspectiva bakhtiniana de gênero como forma relativamente estável.
Claro que não se pode esquecer a forma, mas não tem sentido levar os estudantes a reconhecer em que gênero o texto objeto de estudo se encaixava por sua forma, deixando-se de lado o fator que considero mais relevante, o gênero como prática social vinculada a instituições e que reflete a organização social e relações de poder. Em síntese: não basta o estudante reconhecer que o texto que tem diante de si é um bilhete, um artigo de opinião, uma notícia, uma crônica, um poema, um meme etc., se ele é incapaz de construir o sentido do que “lê” e detectar seu funcionamento social e histórico.
Os gêneros são formas de vida (aqui eu penso em Wittgenstein e seus jogos de linguagem, nas palavras entrelaçadas às atividades) e não formas engessadas, são caracterizados pela plasticidade e fluidez, que muitas vezes é mascarada quando se adota a perspectiva classificatória, reduzindo os gêneros do discurso a verbetes de dicionários.
Há um senso comum de que se aprende ler, lendo. Essa assertiva costuma ser lida com um subentendido falso e, sobretudo, perigoso do ponto de vista pedagógico, pois acaba dando a entender que a leitura é uma habilidade que se aprende, mas não se ensina. Não compartilho, evidentemente, com essa ideia. Postulo que a leitura pode e deve ser ensinada e cujo ensino compete principalmente, mas não exclusivamente, aos professores de língua materna.
Para que o ensino seja eficaz, ele tem de estar alicerçado em uma base teórica, que o docente deve dominar para fazer a transposição didática aos estudantes. O aprendizado da leitura não envolve apenas uma prática, envolve também uma teoria. A performance pressupõe uma competência. Ao docente, destinador-manipulador, é quem cabe dar ao destinatário-sujeito a competência, explicitando aos estudantes, sujeitos-do fazer, os procedimentos de que o autor-enunciador se valeu para a construção dos sentidos do texto.
Uma das formas de se iniciar o trabalho com o conto é pela recuperação da enunciação, pressuposta pelo enunciado-conto. Em outros termos, trabalhar as categorias de pessoa, tempo e espaço e suas projeções no texto.
O estudo da categoria pessoa permite estudar a focalização e seus efeitos de sentido e como se processam as delegações de vozes (enunciador / narrador / interlocutor). A categoria tempo possibilita mostrar como se organiza o sistema temporal do texto, levando os alunos a perceber que há um tempo da narração e um tempo da matéria narrada e que, embora as narrativas mais tradicionais se desenvolvam num tempo cronológico, é comum a subversão da ordem dos acontecimentos por meio de anacronias.
Por ser uma narrativa condensada, é possível ler um conto em sua íntegra em pouco tempo, o que se pode fazer na própria sala de aula, sobrando tempo para que se possa efetuar uma discussão sobre o que foi lido e compartilhar experiências de leitura. Além disso, o conto é um gênero que apresenta diferentes categorias (policial, de mistério, de terror, fantástico, maravilhoso etc.), cobrindo um leque de temas muito amplo e acessível a leitores de todos os gostos e idades. Não é por acaso que está sempre presente em antologias escolares. Trabalhar com o conto também permite que se entre em contato com um maior número de produções. Podem ser lidos textos de autores, épocas, estilos e temas diversos, o que permite ao leitor construir um conhecimento bastante amplo sobre o gênero.
Outro fator que justifica a escolha do conto é o fato de que suas características estão presentes em outros gêneros narrativos. As informações sobre narrador, narratividade, personagem, tempo e espaço podem ser aplicadas ao romance e à novela, e mesmo a textos não ficcionais, o que significa que o aluno-leitor poderá́ fazer a transposição dos conceitos estudados para outros gêneros, inclusive para aqueles cujo plano da expressão não seja necessariamente verbal.
Meu livro, Leitura do texto literário, publicado pela Editora Contexto, trata de questões relativas à leitura literária, fornecendo subsídios teóricos, exemplificação e sugestões de atividades para um trabalho com o texto literário (em seus diversos gêneros) em sala de aula. Para mais informações sobre a obra, clique no link abaixo.
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Excelente! Ler COM os(as) alunos(as) é o ideal, assim podemos fazer a travessia do texto, com suas peculiaridades, dificuldades, linhas e entrelinhas , apontando, indicando, ajudando-os(as) na construção do sentido e, a partir daí, ampliar para outros conhecimentos e saberes.
Infelizmente não é o que costuma acontecer, raramente conseguimos esse tempo, pressionados por planejamentos os quais, comumente, são feitos de acordo com um modelo (e pensamento) equivocado das instituições.