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Neste post falo de um conto do mestre Edgar Allan Poe. Um clássico dos clássicos: O barril de amontillado (The Cask of Amontillado), publicado pela primeira vez no Godeys’s Lady’s Book, em outubro de 1846, e classifica-se como um conto de terror.
Começo por um resumo da história. São duas as personagens, Montresor, o narrador, e Fortunato. O tema do conto é dado nas primeiras linhas: a vingança, uma paixão complexa de liquidação de falta: “… jurei vingar-me” . Aspectualmente, a vingança não é pontual, aquela que resulta de uma reação imediata à ofensa recebida, portanto marcada pela intensidade. Embora decorrente de um sentimento de revolta, trata-se de uma vingança aspectualizada pela duratividade, com andamento desacelerado. Montresor elabora um complexo programa para atrair Fortunato, manipulando-o a fim de fazê-lo cair em logro. Para isso, vale-se de estratégias de sedução, de tentação e de provocação, para levá-lo a um querer-fazer e a um deve-fazer que consiste em provar o vinho a fim de testemunhar se é um verdadeiro amontillado
A vingança
A vingança não é apenas o tema do conto, ela funciona também como destinador-manipulador, na medida em que estabelece com um destinatário-sujeito, Montresor, uma relação contratual. A vingança, como se vê, exerce também a função de um sujeito de fazer, na medida em que atribui ao sujeito de estado, Montresor, uma competência para a ação. Esse sujeito então está pronto para executar o programa narrativo, ele quer, deve, pode e sabe fazer. No nível narrativo, temos ainda um antissujeito, Fortunato, com o qual Montressor estabelece uma relação polêmica.
A manipulação
Um outro programa narrativo se desenvolve. Montresor tem de manipular Fortunato para que ele caia na armadilha preparada. A manipulação é feita por provocação, pois o manipulador usa de seu saber para colocá-lo em situação de escolha forçada. No conto, Montresor persuade Fortunato a ir à sua casa, levando-o a crer que ele é um excelente conhecedor de vinhos. Fortunato cai na armadilha e vai à casa de Montresor verificar se o vinho é mesmo um amontillado. Para que o plano saia perfeito, Montresor tinha dispensado os empregados e, quando Fortunato chega à casa, Montresor faz com que ele beba mais vinho, deixando Fortunato sob efeitos do álcool. Na casa, Montresor, sozinho com Fortunato, leva este à adega onde estaria armazenado o amontillado. Num local, há um nicho e Montresor prende Fortunato na parede usando uma corrente e um cadeado. A seguir, começa lentamente a fechar o nicho com camadas de pedra que vai assentando com uma colher de pedreiro, emparedando Fortunato. A vingança foi realizada.
Os sentidos do conto
A construção do sentido do conto depende fundamentalmente de o leitor distinguir os dois planos do conto que se superpõem no nível mais superficial do texto, o nível discursivo, observando sua sintaxe. Os dois planos a que me refiro são o da enunciação e o do enunciado. Há um narrador instalado no texto (Montresor) por delegação do enunciador. Esse narrador dá voz ao ator Fortunato, que passa a ser seu interlocutor, o que confere efeito de sentido de realidade ao conto. Montresor diz a Fortunato uma coisa no nível do enunciado, mas outra na enunciação. Da dissonância entre essas duas vozes, emerge o tom irônico e cáustico do conto, na medida em que, na enunciação, Montresor anuncia que vai matar o amigo, mas esse não se dá conta disso, porque no enunciado lhe é dita outra coisa e, tendo a percepção da realidade comprometida pelos efeitos do álcool, caminha, sem saber, para a morte. Montresor insiste em que Fortunato não deve se ocupar da tarefa de reconhecer o vinho, ademais porque esse se encontra em lugar insalubre e bastante úmido e o amigo dá sinais de não estar bem de saúde. Na enunciação, está exatamente tentando persuadir o outro a ir à sua casa. O enunciador deixa pistas claras do projeto de vingança. O brasão dos Montresors tinha por divisa “Nemo me impune lacessit“, ou seja, ninguém me ofende impunemente. Quando Fortunato pergunta a Montresor se ele era maçom, o primeiro confirma mostrando ao segundo uma colher de pedreiro. No percurso para o barril de amontillado, deparam-se com catacumbas, cripta, ossos, restos humanos empilhados. E, ironia das ironias, a narrativa de Montresor termina pelas seguintes palavras: In pace requiescat.
Terror e suspense
Poe tinha sua própria teoria do conto. Para ele, esse gênero deve apresentar unidade de efeito, ou seja, deve provocar no enunciatário-leitor alguma sensação: de terror, de deslumbramento, de engano, de encantamento. Em O barril de amontillado a sensação que o enunciador quer despertar no enunciatário-leitor é a de terror. Segundo o autor de O corvo, o conto é uma construção racional, ou seja, há um projeto que o contista deve levar adiante a fim de produzir interesse. Para alcançar essa unidade de efeito, o conto não pode ter uma grande extensão, ou seja, deve ser lido numa assentada, a fim de não desviar o interesse do enunciatário-leitor. Ressalto que essa teoria aplica-se com perfeição ao conto objeto deste artigo. A questão que se coloca é a seguinte: de que estratégias discursivas o enunciador se vale para manter o interesse do enunciatário-leitor e despertar a sensação de terror, se este já sabe, desde as primeiras linhas, que o ator-narrador atrai Fortunato para executar seu plano de vingança? O narrador sabe o que aconteceu com Fortunato, o enunciatário-leitor vai desvendando o desfecho da narrativa, o único que não sabe o que lhe vai acontecer é Fortunato e é para o percurso dele que o enunciador desvia os olhos do enunciatário-leitor, obtendo com isso os efeitos de sentido de suspense e terror.
PS.: sobre esse conto escrevi o artigo O acontecimento e o mal em O barril de amontillado, de Edgar Allan Poe, que foi publicado na Revista Acta Semiótica da Universidade Federal da Paraíba. Para quem se interessar deixo o link aqui.