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A helenista e latinista canadense Anne Carson, em certa passagem de seu livro Autobiografia do vermelho: um romance em versos, traduzido por Ismar Tirelli Neto e publicado pela Editora 34, formula e responde à seguinte pergunta: O que é um adjetivo? Abaixo transcrevo a passagem do livro em que ela responda a essa pergunta.
Substantivos nomeiam o mundo. Verbos ativam os nomes. Adjetivos vêm de outro lugar. A palavra adjetivo (epitheton em grego) é ela própria um adjetivo que significa “colocado sobre”, “acrescentado”, anexado”, “importado”, “estrangeiro”. Adjetivos parecem acréscimos bastante inocentes, mas vejamos. Esses pequenos mecanismos importados estão encarregados de vincular todas as coisas do mundo ao seu lugar no particular. São os trincos do ser.
Na escola, desde os anos iniciais, nas aulas de língua portuguesa, os professores se preocupam em ensinar aos alunos essa classe classe de palavra, insistindo em que se trata de uma palavra que “qualifica” o substantivo. Passam pelo adjetivo rapidamente e, muitas vezes, acabam deixando de lado questões relativas ao sentido dos adjetivos em decorrência da sua posição na frase.
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O adjetivo, na frase, pode estar depois do substantivo ou antes dele. A posição mais comum e mais neutra é à direita do substantivo. Colocado à esquerda, o adjetivo assume caráter subjetivo. Assim, a posição que o adjetivo ocupa em relação ao substantivo (à direita ou a esquerda) interfere no modo como o substantivo é caracterizado, podendo acarretar mudança de sentido. Isso significa que, embora o adjetivo possa aparecer depois ou antes do substantivo, a escolha da posição que ele ocupará não é absolutamente livre, na medida em que está ligada aos efeitos de sentido que se pretendem produzir.
amigo velho / velho amigo
homem grande / grande homem
Um amigo velho é um amigo idoso, um amigo de idade avançada. Com a anteposição do adjetivo, tem-se um caráter mais subjetivo, a caracterização é afetiva. Assim, um velho amigo é um amigo de algum tempo e pode não ter necessariamente idade avançada. Em homem grande, a caracterização é objetiva, refere-se ao aspecto físico, ao tamanho do ser representando pelo substantivo (valor descritivo). Em grande homem, a caracterização é subjetiva, apresenta uma caracterização que diz respeito a aspectos morais, ao caráter (valor afetivo). Em outros termos e resumindo: o adjetivo posposto ao substantivo tem valor denotativo (objetivo, descritivo); anteposto ao substantivo, tem valor conotativo (subjetivo, afetivo).
Evidentemente, certos adjetivos só podem ser usados com valor denotativo. Nesse casos, não há opções para sua colocação. Sua posição é fixa: só podem ser colocados à direita do substantivo. É o que o correm em passaporte vencido; livro encadernado; fonema nasal; crise hepática.
Assim como ocorre com outras classes de palavras, o uso na frase é essencial para determinar se uma palavra funciona como adjetivo ou não. Um romance de E.M. Foster, depois adaptado para o cinema, tem por título O paciente inglês. Fora de contexto, pode-se ficar na dúvida se se trata de um paciente (substantivo) de nacionalidade inglesa (função de adjetivo) ou de um inglês (substantivo) que tem a qualidade da paciência (função de adjetivo).
O fato de o adjetivo anteposto ter valor diferente do adjetivo posposto permite que se criem expressões em que adjetivos de sentidos opostos estejam se referindo a um mesmo substantivo sem que haja contradição alguma, como em Pobre menina rica, título de um filme norte-americano de 1936, dirigido por Irving Cummings com Shirley Temple no papel principal e de um musical de Vinícius de Moraes e Carlos Lyra.
A propósito, um filme da década de 1970, dirigido por Arthur Penn, com Dustin Hoffman no papel principal tinha por título Pequeno grande homem, tradução literal do título original Little Big Man. No caso, pequeno se refere ao aspecto físico (caracterização objetiva) e grande, ao aspecto moral (caracterização subjetiva).
Em Pobre menina rica (filme e musical), rica refere-se a um dado objetivo, trata-se de uma menina que possui bens ou dinheiro e pobre a um dado subjetivo, trata-se de uma menina que inspira compaixão. O adjetivo posposto ao substantivo é normalmente restritivo, ao passo que, quando o antepomos, ao substantivo seu caráter restritivo é esvaziado.
Nesses exemplos, tem-se, do ponto de vista sintático o seguinte: em pequeno grande homem, o adjetivo grande caracteriza o substantivo homem e o adjetivo pequeno não caracteriza homem, mas a expressão grande homem: pequeno [grande homem]. Em pobre menina rica, rica caracteriza menina e pobre caracteriza menina rica: pobre [menina rica].
Esclareço que o adjetivo pode estar diretamente ligado ao termo a que se refere (substantivo ou pronome), isto é, sem mediação de verbo, como em A infeliz Desdêmona morreu e A atenciosa funcionária resolveu o problema rapidamente. Quando isso ocorre, diz-se que há relação de qualificação.
Quando o adjetivo não se ligar diretamente ao substantivo ou pronome , ou seja, quando entre o adjetivo e o substantivo houver mediação de verbo, diz-se que ocorre relação de predicação, como em Desdêmona morreu infeliz e Todos a consideram atenciosa. Na relação de qualificação, os adjetivos funcionam como adjuntos adnominais; na relação de predicação, funcionam como predicativos (do sujeito ou do objeto).
Por fim, é preciso que fique claro que, ao contrário do que muita gente imagina, o adjetivo não é um enfeite, uma palavra que se usa para dar brilho ao substantivo; pelo contrário, nos textos das mais variadas esferas discursivas, o adjetivo cumpre papel relevante. Está presente não apenas em textos descritivos em se são usados para caracterizar pessoas e ambientes, mas também em textos argumentativos e expositivos, na medida em que por meio de adjetivos se expressam avaliações positivas ou negativas. Como diz Anne Carson, “os adjetivos são os trincos do ser”.