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Como a língua é viva, não só sempre surgem palavras novas como também palavras já existentes adquirem novos significados. Numa concepção pragmática de linguagem, o sentido de uma palavra está ligado ao uso que se faz dela. Atualmente, emprega-se a palavra formidável com o sentido de ótimo, excelente, fantástico. Em tempos distantes, esse adjetivo era usado com o sentido de horrível, medonho, pavoroso, aterrador, horrendo, como se vê soneto Versos íntimos, de Augusto dos Anjos, que assim começa: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável / Enterro de sua última quimera“.
Outro exemplo de palavra cujo significado se alterou com o tempo é melindre. Em sua origem, esse substantivo era usado para nomear um tipo de bolo feito com mel. Posteriormente, passou a ser usado para designar algo feito com delicadeza excessiva; depois se tornou sinônimo de mimo, pudor, recato. Para chegar ao significado com que é empregada atualmente – suscetibilidade, facilidade em se magoar ou ofender –, essa palavra percorreu um longo caminho.
A literatura, que comumente questiona a própria palavra e sua significação, é farta de exemplos de textos que exploram a diferença do sentido original de uma palavra com aquele que o uso disseminou, como ocorre no conto Famigerado, de Guimarães Rosa, que faz parte da obra Primeiras estórias.
No conto, Damázio, um “jagunço até́ na escuma do bofe”, “com cara de nenhum amigo”, “com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo”, vindo de longe e armado, procura o doutor, o narrador do conto, para que esse lhe revelasse o sentido de famigerado, pois “um moço do Governo” usara essa palavra para referir-se a ele.
Damázio supõe que a palavra possa ter sido usada pelo outro com a intenção de ofendê-lo: “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”. Damázio se tranquiliza quando o doutor, depois de alguma hesitação, lhe revela que famigerado é o mesmo que célebre, notório, notável.
Quem tem acompanhado o noticiário político tem observado com bastante frequência, o uso da palavra narrativa com sentido um tanto quanto diferente do empregado nos estudos literários. Na voz de agentes políticos, essa palavra passou a ser usada para desqualificar e desconstruir discursos opositores, procurando destacar que se trata de uma versão do fato que não corresponde à verdade. No discurso político atual, a palavra narrativa passou a ser usada como forma de abrandar o sentido negativo da palavra mentira. Trata-se, portanto, de um eufemismo e de uma estratégia para qualificar o discurso do outro como mentiroso.
A mentira é inerente à linguagem humana e sempre teve lugar privilegiado na esfera politica. Não é sem razão que as fake news encontraram nela terreno fértil para germinar. Com as redes sociais, a mentira e a desinformação têm se espalhado com extrema velocidade. Em pouquíssimo tempo, atinge milhões de pessoas.
Tachar o discurso do oponente como narrativa, ou seja, fabulação, é estratégia retórica para desqualificar o adversário, tentando fazer colar nele o éthos de pessoa mentirosa, falsa e mal-intencionada.
Assiste-se hoje, na imprensa, nas redes sociais e em aplicativos de mensagens, a uma verdadeira batalha de narrativas, de versões distintas, muitas vezes conflitantes, de um mesmo fato. É desnecessário apontar exemplos, pois eles se renovam a cada dia.
O campo lexical da mentira não só é vasto como também é constantemente renovado. Além da palavra narrativa, o empréstimo da expressão de origem inglesa fake news já superou, pelo menos nas novas tecnologias, o uso de palavras como inverdade, falácia, balela, lorota, boato. Aliás, esta última é outro exemplo de palavra cujo sentido alterou-se com o tempo. Boato veio do latim (boātus,us), cujo sentido era mugido, berro de boi. Num passado distante, boato passa a designar anúncio de uma grande novidade, dado em voz bem alta. Posteriormente, a palavra boato passou a ser usada com o sentido em que se emprega atualmente: notícia falsa, mentirosa, infundada.
O sentido negativo de fake news, no entanto, é mais intenso do que o de seus correspondentes vernáculos e ainda costuma destacar o meio pelo qual a mentira se dissemina: redes sociais e aplicativos de mensagens, principalmente. Ao sentido primário de mentira, contido na expressão fake news, agregaram-se outros, de tal forma que fake news tem o sentido de mentira que traz perigo ou risco, devendo, portanto, ser desestimulada e combatida.
Já está disponível o podcast em que converso com o pessoal da Árvore Digital sobre leitura, escrita e literatura. O bate-papo dura 38 min/ Link para o podcast: https://open.spotify.com/episode/0ywNXp08g49JafVTY1z8po?si=-SUgKdOiQV2IYJt0Q2HVwA