Meu primeiro aluno

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No blogue, há um espaço para a publicação de crônicas. Nele, eventualmente, apresento relatos de acontecimentos relativos a temas tratados no blogue. Abaixo, segue crônica em que trato da experiência de minha primeira aula.

Meu primeiro aluno

Para cumprir obrigação profissional, desloquei-me para o centro da cidade, por onde perambulei a manhã toda revendo pessoas e lugares. A certa altura, subia a rua São Joaquim, no bairro da Liberdade, e passei em frente ao colégio Presidente Roosevelt, uma conceituada escola pública bastante antiga de São Paulo.

Não é que, de lá do fundo da memória, saltou a lembrança daquele que foi meu primeiro aluno. Me senti jovem e animado, como diz Alphonsus Guimaraens nos dois primeiros versos de conhecido soneto: “Como se moço e não bem velho eu fosse / Uma nova ilusão veio animar-me”.

No começo dos anos 1970, eu acabara de entrar no curso de Letras Clássicas da USP e, para defender uns trocos, andei espalhando aos quatro ventos que dava aulas particulares de português. Pois não é que uma senhora veio me procurar e queria saber se eu poderia dar algumas aulas para o filho dela, que corria o risco de ser reprovado, já que andava muito mal em português. Perguntei onde o menino estudava e que matéria lhe estava sendo ensinada que tanta dificuldade trazia. A mãe do garoto me disse que ele estudava no Roosevelt, que estava, no que seria hoje, o oitavo ano do Ensino Fundamental e que tinha dificuldades em fazer a análise sintática de frases. Achei que daria conta do recado. Afinal já era aluno do curso de Letras da USP e o menino nem concluíra ainda o curso ginasial. Ah húbris maldito!

Fui animado e confiante para o que seria a minha primeira aula como aspirante a professor e encontrei um garoto quieto, tímido e bastante assustado. Pedi que ele me falasse sobre o que não estava entendendo. Ele então me mostrou o caderno de português, bem anotado, com letra caprichada e, apontando uma página, disse: não consigo fazer isso que a professora pede. Olhei a página e vi uma frase de razoável extensão e abaixo dela um esquema em forma de árvore, com muitos ramos. Virei a página, mais arvorezinhas; outra página, mais arvorezinhas. O caderno parecia um grande bosque. Lição de casa: fazer o esquema arbóreo de uma série frases não curtas.

A professora não perguntava assunto que eu achava que sabia. Não perguntava qual era o sujeito, qual o objeto, qual o adjunto, etc. Nada de nomenclatura. Para construir a tal árvore, o aluno tinha de perceber relações entre palavras da frases e hierarquias entre elas. Se percebesse isso, conseguiria montar a árvore, levaria um certo e tudo bem; caso não conseguisse, corria sério risco de repetir o ano.

Minha tarefa estava dada: ensinar o menino a construir, para cada frase, os esquemas em forma de árvore. Era exatamente isso que iria cair na prova do último bimestre. O problema é que eu não sabia fazer aquilo. Eu até sabia dizer qual era o sujeito da frase, qual era o objeto, se o objeto era direto ou indireto…, mas nunca tinha visto aquelas árvores na minha vida. Ou eu confessava que não sabia, pedia o boné e ia embora (adeus os trocados que receberia com as aulas!), ou aprendia como se montavam as árvores para poder ensinar ao menino. Fui olhando os exemplos que meu primeiro aluno copiara da lousa e, graças à colaboração dele, que ia me explicando o que a professora dissera, fui entendendo como funcionavam as tais arvorezinhas. Íamos conversando e aprendendo juntos.

No começo do mês de dezembro, a mãe do menino veio à minha casa – não havia o Zap e eu não tinha telefone em casa – e me disse que o filho fora muito bem na prova final e conseguira passar de ano. Em agradecimento, me deu uma bonita camisa como presente de Natal.

Olhando o prédio do colégio Roosevelt na rua Joaquim, me lembrei com saudade do meu primeiro aluno, cujo nome está numa camada tão profunda da memória que não consegue vir à tona. Como consolo, me lembrei de palavras do narrador em uma passagem de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa:

“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.

4 Comentários


  1. Delícia de crônica, professor! Também dei algumas aulas particulares quando estudava Letras, e também para ganhar um dinheirinho. Nesta relação particular e, muitas vezes, singular, de professor/aluno, aluno/professor, são ricas e não raras as experiências compartilhadas que, em geral, ganham um lugar especial em nossa memória afetiva. Aguardo a próxima crônica. Um abraço.

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    1. Oi Maria Beatriz, de fato as aulas particulares (ao vivo) são um troca de experiências enriquecedoras. Acho que com a pandemia e a consequente, mas necessária, aula via internet essa relação pessoal levou a um tipo de aula muito fria. Tenho saudades das aulas presenciais, sejam individuais ou coletivas.

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  2. Belíssima crônica, Professor Ernani, é com muita alegria que também me lembrei do meu primeiro aluno. Saudações, prezado Professor

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