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Por Ernani Terra ©
Uma das obras de nossa literatura que mais me marcaram são as memórias do escritor e médico mineiro Pedro Nava, composta de seis volumes: Baú de ossos, Balão cativo, Chão de ferro, Beira mar, Galo das trevas, Círio perfeito. Antonio Candido, referindo-se a Nava, afirma que o memorialista mineiro é um dos grandes escritores brasileiros, colocando-o na companhia de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Por memórias, designo um gênero textual que consiste no relato feito por alguém, o memorialista, de acontecimentos de que participou ou presenciou.
A leitura das memórias de Nava suscita uma discussão. Dado seu caráter não ficcional, devem ser consideradas literatura? Se você leu as memórias de Nava, percebeu que ele relata fatos que vivenciou, sua infância em Minas Gerais, os estudos no Colégio Pedro II no Rio de Janeiro e na Faculdade de Medicina, entre muitas outras coisas, numa visão subjetiva dos acontecimentos vividos.
Para responder a essa questão, peço que leiam o trecho a seguir, pertencente ao primeiro volume (Baú de ossos) das memórias de Pedro Nava. Nele, o memorialista fala da batida, uma espécie de rapadura do Ceará, que era feita por sua avó.
Se a batida do Ceará é uma rapadura diferente, a batida de minha avó Nanoca é para mim coisa à parte e funciona no meu sistema de paladar e evocação, talqualmente a madeleine da tante Leonie. Cheiro de mato, ar de chuva, ranger de porta, farfalhar de galhos ao vento noturno, chiar de resina na lenha dos fogões, gosto d’água na moringa nova – todos têm sua madeleine. Só que ninguém a tinha explicado como Proust – desarmando implacavelmente, peça por peça, a mecânica lancinante desse processo mental. Posso comer qualquer doce, na simplicidade do ato e de espírito imóvel. A batida, não. A batida é viagem no tempo. Libro-me de sua forma, no seu cheiro, no seu sabor. Apresentam-se como pequenas pirâmides truncadas, mais compridas do que largas, lisas na parte de cima, que veio polida das paredes da fôrma, e mais áspera na de baixo, que esteve invertida e secando ao ar, protegida por palha de milho. Parecem lingotes da mina de Morro Velho, só que o seu ouro é menos mineral, mais orgânico e assemelha-se ao fosco quente de um braço moreno. Seu cheiro é intenso e expansivo, duma doçura penetrante, viva como um hálito e não se separa do gosto untuoso que difere do de todos os açúcares, ora meio seco, ora melando – dominando todo o sentido da língua e ampliando-se pela garganta, ao nariz, para reassumir qualidade odorante, e aos ouvidos, para transformar-se em impressão melódica. Para mim, roçar os dentes num pedaço de batida é como esfregar a lâmpada de Aladim – abrir os batentes do maravilhoso.
NAVA, Pedro. Baú de ossos. 11a. ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial; São Paulo: Giordano, 2005, p. 26-27.
O texto de Nava é uma sequência descritiva dentro de um gênero narrativo (memórias). O narrador, nesse caso, é o próprio autor, não se trata, pois, de texto ficcional. Apesar disso, ele não se limita a transmitir para o leitor uma descrição fria e objetiva do doce; pelo contrário, a descrição é forma de trazer à memória as lembranças (“…funciona no meu sistema de paladar e evocação“…).
Por meio da linguagem, as sensações e lembranças passadas se presentificam. O memorialista nos dá a pista ao fazer uma relação intertextual com a obra literária que mais trabalhou a redescoberta do tempo pela memória. Se para o narrador de Em busca do tempo perdido, foram as madeleines de tia Leonie que lhe permitiram mergulhar no passado; para o narrador de Baú de ossos, foram as batidas da avó Nanoca ( “A batida é viagem no tempo“). Assim, como em Proust, a descrição do doce se faz por um processo de desmontagem peça a peça. Mas o que se desmonta? Não só o doce, mas a própria memória.
A descrição não se atém ao gustativo; pelo contrário, a organização textual se faz pela referência a outras sensações evocadas pelo doce: visuais (“pequenas pirâmides truncadas, mais compridas do que largas“); táteis (“lisas na parte de cima […] e mais áspera na de baixo“), olfativas ( “Cheiro de mato“, “Seu cheiro é intenso e expansivo“, “viva como um hálito“, “para reassumir qualidade odorante“) e até mesmo auditivas (“ranger de porta, farfalhar de galhos ao vento noturno, chiar de resina na lenha dos fogões“, “aos ouvidos, para transformar-se em impressão melódica“). Esse efeito sinestésico da descrição só é possível porque, para o narrador, o doce tem um componente mágico (mais uma vez a relação intertextual, agora com a lâmpada de Aladim, do Livro das mil e uma noites), que lhe permite abrir as portas de um mundo que agora só existe na memória.
A leitura desse trecho mostra que o literário não se prende necessariamente ao ficcional. Por outro lado, a verdade do literário não é a verdade histórica, objetiva, mas a verdade vista pelo olhar do artista. O próprio Nava afirma que “o memorialista é uma forma anfíbia dos dois [o ficcionista e o historiador] e ora tem de palmilhar as securas desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua interpretação“.
Num outro trecho de suas memórias, ressalta que “o memorialista conta o que quer, o historiador deve contar o que sabe” . A literariedade da descrição decorre de como o autor vê o que descreve, fundindo o objetivo com o subjetivo, trazendo ao presente o passado, de modo que, ao descrever o doce, descreve a si mesmo, a redescoberta do doce é um descobrir a si mesmo.
PS.: Outro livro de memórias que é uma aula de literatura são as memórias de Gabriel García Marquez. Lamentavelmente, apenas o primeiro volume delas, Viver para contar, foi publicado.
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(…)“o memorialista é uma forma anfíbia dos dois [o ficcionista e o historiador] e ora tem de palmilhar as securas desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua interpretação“. Maravilhooooso!! Consegui aprender sobre a rapadura “batida do Ceará” e sentir o cheiro e o gosto da batida da avó Nanoca. Delícia! Obrigada, Nava, forma anfíbia (historiador e ficcionista).