Tempo de leitura: 4 minutos
Neste post, faço algumas considerações sobre o livro, Matéria derradeira, de Jessyca Pacheco, publicado pela Editora Córrego, lançado no segundo semestre de 2015. É seu livro de estreia e apresenta trinta poesias e um conto, Fragmentos.
Neste texto, não vou fazer análise ou comentário de algum texto em particular. Os motivos são dois: o primeiro é que não quero tirar o prazer do contato direto com os textos de Jessyca Pacheco; o segundo é que este blogue não é o espaço adequado para análises teóricas de textos. Meu propósito é indicar bons livros, seja de autores consagrados ou estreantes, com algum comentário sobre eles. Caso haja interesse numa análise teórica do livro, remeto o leitor para artigo de minha autoria, publicado em 2017, na Revista Entretextos, da Universidade Estadual de Londrina, em que discuto dois dos textos presentes no livro. Clique aqui para ter acesso ao artigo.
Matéria Derradeira é o que se pode chamar de um pequeno grande livro. Nas
suas 45 páginas, encontramos textos de uma poeta de grande magnitude. É impossível ler a poesia de Jessyca Pacheco impunemente. Temas como o dilaceramento e o inacabamento do ser conferem unidade temática ao livro e são revestidos por figuras que cortam e deixam sangrar, como “corpos em chama”, “leite empedrado, estéril”, “lambo antigas feridas”, “matéria mortuária”, “prematuro natimorto do ventre sugado”.
O livro pode ser lido de diversas formas e, a cada leitura, novos sentidos emergem. Tenho para mim que o livro de Jessyca Pacheco é um mosaico, formado por 30 pedras coloridas, as 30 poesias do livro. Cada peça é uma unidade autônoma, feita de material diferente, com seu brilho próprio. As peças diferem entre si na expressão, mas se relacionam num conteúdo harmônico: uma diversidade que forma uma unidade, de sorte que as 30 poesias, as trinta peças do mosaico, formam o todo, que será lido como uma nova poesia. Mutatis mutandis, algo semelhante ao que faz Cortázar em O jogo da amarelinha.
Uma primeira leitura que se pode fazer do livro de Jessyca Pacheco é ler cada peça do mosaico em sua autonomia, pois as 30 poesias são unidades de sentido. A outra leitura, que decorre da primeira, resulta da percepção do leitor de que no livro instala-se o contínuo no descontínuo, isto é, cada poesia liga-se à precedente e anuncia a seguinte. Lê-se então Matéria Derradeira como uma grande poesia; mas, como o leitor não precisa ler na sequência em que aparecem nas páginas do livro, já que cada peça é autônoma, a cada nova ordem que der à leitura construirá novo sentido para o todo, como se fosse um calidoscópio que vai girando e produzindo produzir novos sentidos.
O livro de Jessyca Pacheco constitui um hipertexto, na medida em que possibilita uma leitura não linear, não hierarquizada, mas reticular, em que cada leitor define seu percurso de leitura, por meio de links que encontra esparramados pelos textos. Mas não é necessário que se leve o fio de Ariadne para não se perder; pelo contrário, deve-se ler Matéria Derradeira, deixando-se perder. Ler não como um timoneiro que conduz o barco, mas permitindo que o barco escreva seu próprio caminho, como diz genialmente Paulinho da Viola naquele samba “Não sou ou quem me navega / Quem me navega é o mar”.
E quais são esses links que amarram uma poesia na outra e que arrastam o leitor para mares nunca dantes navegados? O que confere ao ao livro essa unidade mais ampla que a soma de todas as suas partes? Não quero, como disse, tirar do leitor o prazer em descobri-los por si só. Chamo apenas a atenção para que se leia Matéria Derradeira com o sensível regendo o inteligível, abandonando o raciocínio implicativo, suprimindo a temporalidade e a espacialidade, deixando as poesias falarem por si. Deixar o texto falar, conversar com ele é um princípio básico de toda leitura.
Não queira antecipar o sentido das poesias, deixe que ele brote naturalmente; não raciocine, leia sentindo “os cheiros e sons presentes”, “os sussurros tatuados”, “o gozo do gozo cúmplice silencioso”, “doce cheiro” e o acontecimento estésico se manifestará naturalmente.
PS.: Intencionalmente usei a palavra poesia e não poema para designar os textos de Jessyca Pacheco. Poema remete ao produto, à coisa feita, ao acabado; poesia remete ao processo. Os textos de Matéria Derradeira se caracterizam pelo inacabamento. A cada leitura, um novo acontecimento.
Link permanente