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Neste post, retomo assunto de que falei há algum tempo neste blogue: a variação linguística. Naquela ocasião, comentei rapidamente o conceito de variação linguística e me concentrei principalmente no conceito de norma.Esse assunto é discutido, num contexto mais amplo, no livro Linguagem, língua e fala, de minha autoria, que será lançado brevemente pela Editora Saraiva.
A língua é uma instituição social de domínio público e de caráter abstrato, que se concretiza por meio de atos individuais de fala, os enunciados, ou o discurso linguístico. Com base nisso, podemos afirmar que a língua portuguesa é algo que não existe concretamente, ela tem existência apenas virtual. O que existe são realizações, usos, dessa língua, que são concretos e, portanto, observáveis. Em outras palavras, a língua só pode ser observada a partir de seu uso, ou seja, a partir de enunciados concretos, textos falados ou escritos. Uma língua que não apresenta mais falantes é uma língua morta.
O enunciado é o produto da enunciação. Um sujeito, o enunciador, se apropria do sistema da língua, que é abstrato, e a põe em uso. Cada ato de enunciação é único e irrepetível. Repetimos durante anos todos os dias a frase “Bom dia”. A frase será sempre a mesma, mas cada vez que é proferida constitui um enunciado único, pois a enunciamos a enunciatários distintos, em tempos distintos, em lugares distintos, com estados de espírito distintos. O ato de dizer “bom dia” a alguém se esgota no próprio ato de dizer, é único.
Cada sujeito, ao se apropriar da língua, o faz de maneira diversa dos demais, em decorrência de fatores geográficos, socioculturais etc., portanto temos vários usos de uma mesma língua. É isso que se entende por variação linguística. Façamos uma comparação. Numa sala de aula, trinta alunos deverão escrever um texto, usando caneta preta. Todos os textos estarão em português na modalidade escrita em tinta preta, mas, se olharmos de perto, não encontraremos dois textos cuja letra seja igual. Cada um tem a sua caligrafia, que é diferente da dos demais. Embora diferentes entre si, podem ser lidas sem maiores dificuldades. Todos escrevem em português, mas há uma diversidade no tipo de letra que cada um apresenta, umas são arredondadas, outras deitadas, umas são grandes, outras pequenas, algumas são mais legíveis que as outras. O mesmo ocorre quando os falantes se apropriam da língua e a convertem em atos de fala. O uso que cada um faz é diferente dos demais, embora todos estejam usando a língua portuguesa. Embora haja uma grande variedade de usos da mesma língua (variação linguística), isso não impede que os falantes se compreendam.
A língua, por ser uma instituição social, espelha a sociedade. Como esta é heterogênea, a língua também é. Podemos então afirmar que uma das características da língua é a variação. De fato, não há uma língua portuguesa, o que existem são variedades dessa língua, ou, como diz José Saramago na epígrafe que abre este capítulo: “Há línguas em português”.
A diversidade no uso de uma mesma língua (a fala) pelos falantes decorre de inúmeros fatores. Interessam-nos aqui cinco tipos: variação geográfica, variação sociocultural, variação individual, variação de canal e variação temática. Antes de falarmos de cada uma delas, é preciso que deixemos bem claras as diferenças entre variação, variante e variedade.
Variante é uma forma alternativa de dizer a mesma coisa. Por exemplo: os enunciados Lúcia namora Ivan e Lúcia namora com Ivan dizem exatamente a mesma coisa, mas se valendo de construções sintáticas diferentes: uma usa o verbo namorar sem preposição; outra, com preposição com. Cada uma dessas formas variantes é representativa de uma variedade do português. No exemplo apresentado, as formas variantes distinguem-se pelo componente sintático. Em outros casos, a distinção está no componente fonológico (mortadela vs. mortandela; sobrancelha vs. sombrancelha), no componente lexical (bolacha vs. biscoito; farol vs. semáforo); no componente morfológico (mãezinha vs. mãinha).
Variedade é um dos modos de uso da língua. Como há inúmeros modos de utilização de uma mesma língua, teremos inúmeras variedades, cada uma com características próprias. Assim, o falar dos moradores de Piracicaba, no interior de São Paulo, é uma das variedades do português. O falar dos jovens do Capão Redondo, bairro da periferia de São Paulo, é uma outra variedade. Vamos agora passar a destacar alguns parâmetros que determinam a variação linguística.
a) variação geográfica: o português falado no sul do país, por exemplo, difere do falado no norte. Ainda dentro de uma mesma região, encontram-se variações do uso da língua. Num mesmo estado, por exemplo, há diferenças entre a língua utilizada por uma pessoa que vive na capital e a empregada pelo habitante da zona rural. Numa mesma cidade, as pessoas que moram nos bairros mais periféricos têm uma linguagem diferente das pessoas que habitam os bairros mais centrais.
b) variação sociocultural: mesmo entre os falantes de uma mesma região geográfica observam-se variações, decorrentes de fatores como escolarização. Uma pessoa com alto grau de escolarização utiliza a língua de maneira diversa de uma pessoa com baixo grau de escolarização. Com base na variação sociocultural, temos a oposição variedade culta x variedade popular. O exemplo que demos, mortadela vs. mortandela, é representativo da variação sociocultural. O primeiro é representativo da variedade culta; o segundo, da popular.
c) variação individual: a variação, nesse caso, é determinada por fatores como idade, sexo e grau de intimidade dos falantes. As crianças não usam a língua da mesma forma que os adultos, assim como os jovens não o fazem da mesma maneira que os idosos. As mulheres fazem uso da língua de maneira diversa da utilizada pelos homens. Basta observar que, em razão de tabus morais, a maioria das mulheres emprega menos palavrões que os homens. Claro que as diferenças existentes entre a linguagem dos homens e a linguagem das mulheres tendem a se neutralizar, sobretudo nos grandes centros urbanos.
Quanto ao grau de intimidade, observamos que a utilização que fazemos da língua com nossos familiares e amigos é bastante diferente da que fazemos numa entrevista de emprego, por exemplo. No primeiro caso, fazemos uso da variedade informal (ou coloquial), no segundo, da variedade formal.
d) variação de canal: está ligada sobretudo à presença ou ausência do enunciatário na situação de comunicação. A variação, nesse caso, ocorre porque, quando o enunciatário está presente, ele atua no processo comunicativo, obrigando o falante a reformular sua fala. A conversação é o exemplo típico de uso da língua com a presença do enunciatário. Na ausência dele, aquele que fala tem mais tempo de planejar sua fala, que não apresentará as marcas da reformulação. Levando em conta a variação de canal, temos a variedade escrita e a variedade falada do português, cada uma com suas características. É importante saber que a fala não é a reprodução da escrita, sendo, na verdade, um outro sistema de utilização da língua pelos falantes.
Os fatores de variação que apontamos não são os únicos. Podemos também ter variação temática e histórica. No primeiro caso, a utilização da língua muda de acordo com o tema que se aborda. Um texto escrito ou uma conversa cujo tópico é doenças pulmonares apresenta um uso da língua bastante diferente de um cujo tópico é informática. A variação histórica decorre do fato de que as línguas, por estarem em constante evolução, se alteram no tempo. O português brasileiro do século XXI é bastante diferente do usado no século XVIII. Gírias que se usavam há algum tempo desapareceram do português brasileiro e outras surgiram. Hoje ninguém mais usaria expressões como é do balacobaco para se referir a algo que é muito bom, mas diria com certeza que isso é massa ou joia. Hoje, somente uma pessoa bem velha faria uso de interjeições como homessa!, cápiste!, caluda!. Para exprimir espanto, admiração, surpresa, em lugar de homessa!, cápiste!, diria caramba! ou cacilda!. Em vez de usar caluda! para pedir ou ordenar silêncio, diria psiu! ou silêncio!.