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Neste post, retomo assunto tratado em meu livro Leitura do texto literário, publicado pela Editora Contexto, e também tratado em live recente no canal A voz literária, com transmissão pelo Youtube. Como o tema deste post é leitura literária, eu precisaria começar tentando definir essa expressão, ou seja, dizer o que se entende por leitura e por literária.
Literária refere-se a literatura. Mas O que é mesmo a literatura?. Não é uma pergunta fácil de responder. A conceituação do que é literário tem variado muito, até mesmo entre estudiosos do tema. A professora Leyla Perrone-Moysés, na apresentação de seu livro Mutações da literatura no século XXI, diz que “Fala-se em literatura como se todos soubessem do que se trata. Mas na verdade não existe um conceito de literatura, mas acepções que variam de uma época a outra”.
Em linhas gerais, pode-se dizer que há duas perspectivas: a primeira, vamos chamar de imanentista ou ontológica, que postula que alguns textos caracterizam-se pela literariedade, ou seja, existiriam no texto propriedades que o permitiriam classificar como literário. Para os autores que se filiam a essa vertente, a linguagem literária é uma linguagem especial, que se afasta da chamada linguagem ordinária.
Numa outra vertente, que não se baseia no texto em si, ou seja, em seus aspectos imanentes, mas em critérios exteriores a ele (sociais, culturais, ideológicos e históricos), uma obra se configura literária quando é legitimada institucionalmente. E quais são essas instâncias legitimadoras? A crítica, a universidade, os intelectuais, a escola.
Por que as obras de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Shakespeare, Flaubert, Virgínia Woolf são consideradas literárias, ao passo que obras de Paulo Coelho, Agatha Christie, Júlio Verne, Conan Doyle, John Grismann, Jo Rowling (Harry Potter), Charlie Donlea (A garota do lago), que têm milhões de leitores no mundo todo, não são?
Muita gente já deve ter feito essa pergunta, às vezes apenas trocando o nome dos autores. Se já lhe fizeram essa pergunta, você sabe que a resposta não é tão simples de ser dada. Normalmente, para respondê-la vamos nos basear não nas obras que esses autores produziram, mas no que dizem sobre eles. Afinal, por mais leitores que nos consideremos, não lemos todas as obras de todos os autores considerados literários.
Para muita gente, é difícil entender por que a obra poética de Vinicius de Moraes reunida em livros é considerada literária, mas suas letras de canções populares gravadas em disco não fazem parte da literatura. Hoje, ninguém põe em dúvida de que a obra de Shakespeare é literária, inclusive aqueles que não leram as obras do poeta e dramaturgo inglês; no entanto, em sua época, esse autor britânico não teve sua obra reconhecida como literária. E o que dizer dos folhetos de cordel? Devem ser considerados ou não obras literárias?
Há também uma tendência em não se atribuir valor literário a produções orais. A palavra literatura provém de littera, que significa letra, o que revela que historicamente sempre se associou a literatura à representação por escrito do signo verbal, como se a literatura fosse uma manifestação artística que se manifestasse exclusivamente na forma escrita. Se o critério para definir o literário tiver como fundamento o registro por letras, os poemas homéricos Ilíada e Odisseia não poderiam ser considerados literários, pois circularam oralmente antes de serem compilados por escrito. Os contos recolhidos pelos irmãos Grimm, expoentes da literatura maravilhosa, circularam oralmente antes de os irmãos germânicos os terem transpostos para a forma escrita. A obra-prima Fausto tem suas raízes no teatro de marionetes a que Göethe assistia em sua infância.
Dizer que o que diferencia um texto literário de um não literário é que o primeiro pertence ao domínio da arte, o que não ocorre com o segundo, é cair em um círculo vicioso e não resolver o problema, pois definir uma obra como arte é tão ou mais problemático que definir um texto como literatura, pois tanto arte quanto literatura são conceitos abertos, isto é, trata-se de conceitos que não podem ser definidos por um conjunto fechado de propriedades necessárias e suficientes. Dizer que arte é o que manifesta o sentimento do belo também parece não resolver o problema.
O belo é um conceito absoluto, ou depende do juízo de cada um? As obras de Andy Warhol, como as reproduções de latas de sopa Campbell, têm o estatuto de arte? A fonte, de Marcel Duchamp, um mictório branco de porcelana, exposto de maneira invertida, deve ser considerada uma manifestação artística? O lugar em que essa peça se encontra exposta a caracteriza como arte? Se fosse encontrada em um depósito de lixo seria considerada arte? Dizer que a literatura está ligada à estética também pouco resolve.
Alguns estudiosos têm proposto que a arte não busca apenas o belo, que se materializa em formas para serem apreendidas não só pelos sentidos, mas que a arte deve levar à emoção e à reflexão. Para Aristóteles, a arte deve provocar a catarse, ou seja, a liberação do emocional, a purificação. Ocorre que muitos filmes “água com açúcar” e romances populares mexem com a emoção de milhões de pessoas, nem por isso são classificados como obras de arte. Nada mais excita a reflexão do que um tratado filosófico, nem por isso as obras de Kant, Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger são classificadas como artísticas.
Se se toma por referência as teorias que postulam que o que caracteriza a literatura é o fruir e não o usar, a tendência é considerar que a abordagem escolarizada do texto afasta-o de seu caráter literário, na medida em que ele deixa de ser objeto de fruição para desempenhar funções de natureza pragmática (o texto passa ser objeto de uso).
A leitura literária deve ser desinteressada, ou seja, deve ser marcada por uma atitude cognitiva não só de compreensão do texto, mas também de busca de prazer estético, que é sentido concomitantemente ao momento da própria leitura.
Pode-se concluir que o conceito de literário não é absoluto, variando de época para época, de cultura para cultura, de pessoa para pessoa. O que faz com que um texto seja considerado literário não são aspectos apenas imanentes, mas também fatores institucionais, por isso se considera literário aquilo que é legitimado e proclamado como tal pela crítica, pela universidade, pelos intelectuais, pela escola. Como o conceito de literário varia de época para época e de sociedade para sociedade, o que é hoje legitimado como literário não significa que sempre tenha sido assim. Autores como Edgar Allan Poe, Flaubert e Balzac, hoje expoentes da literatura ocidental, tiveram, cada um em sua época, sua obra depreciada e não reconhecida como literária.
Hoje, o romance tem o status de gênero literário, mas quando surgiu não foi acatado como tal, sendo considerado um gênero menor em relação à poesia épica e à lírica. Quando Philip Roth, lançou seu livro O complexo de Portnoy, em 1969, sua obra não foi julgada pelos críticos como literatura séria e o público, por sua vez, se sentiu chocado dado seu conteúdo erótico. Hoje, O complexo de Portnoy é reconhecido pela crítica literária como a mais importante obra de Philip Roth. O que dirão da obra Cinquenta tons de cinza daqui alguns anos? Cairá no esquecimento por ter sido uma moda passageira? Será legitimada como literária? De outro ponto de vista, pode-se dizer que, sendo a leitura um processo interativo, um texto legitimado como literário pode não ser processado como tal pelo leitor, uma vez que a literariedade, assim como sentido, não está no texto, mas na maneira como o leitor o lê. Terry Eagleton, em sua obra Teoria literária, afirma que “a definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza do que é lido“.
Um leitor pode ver num livro de Paulo Coelho uma obra de literatura ficcional; outro pode fazer uma leitura pragmática da obra, encarando-a como um guia de conduta; um terceiro, como uma revelação mística. Isso leva a uma outra consideração: afirma-se que a característica do texto literário é o seu não pragmatismo, ou seja, a leitura literária deve obedecer ao império da fruição. Se assim for, quando um estudante lê uma obra considerada literária para efeitos de ser aprovado em um exame, ela deixa de ser literária? Talvez isso explique de certa forma por que na escola há alunos que são avessos à leitura literária. Numa leitura feita por dever ou imposição pode-se obter fruição estética?
Embora se use a expressão gêneros literários, deve-se observar que a literariedade não é imanente ao gênero. Como se verá ainda neste livro, o romance, o conto, a novela, o poema são considerados gêneros literários. Mas isso não quer dizer que todo romance seja considerado literário (vide os da série Sabrina). Se há consenso em considerar Dom Casmurro obra literária, O alquimista, de Paulo Coelho, embora seja um romance, não é reconhecido como tal pela maioria da crítica. As comédias de Molière são consideradas literárias, mas o mesmo não ocorre com a comédia Trair e coçar é só começar, de Marcos Caruso, que chegou a entrar para o Livro dos recordes, por ser a peça de teatro nacional que ficou mais tempo ininterruptamente em cartaz.
Face à dificuldade em conceituar o que é literatura, os estudiosos têm proposto a pergunta: O que se entende por literatura nos dias de hoje? Uma das respostas é que a arte deve apresentar três características essenciais: a) não ter valor utilitário; b) dizer alguma coisa e c) ter seu valor reconhecido.
Este assunto é tratado no meu livro Leitura do texto literário, publicado pela Editora Contexto. Sobre esse tema, participei recentemente de um live transmitida pelo Youtube no canal A voz literária, da Cristiane Navarrete Tolomei.
O conteúdo da live está disponível no Youtube e poderá se acessado pelo link abaixo.