Lazarilho de Tormes

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Em Lazarilho Tormes, obra anônima do séc. XVI, o menino Lázaro sofre nas mãos de seus amos. Atenho-me a um episódio que ele presenciou quando servia o quinto amo. Depois de servir um cego, um clérigo, um escudeiro e um frade, Lazarilho vai servir um buleiro. [1]Um buleiro era um funcionário eclesiástico – podia ser um padre – que levava ao público decretos ou bulas do Papa pelos quais os fiéis que contribuíssem para um determinada causa da … Continue reading

O comércio do buleiro não andava muito bem, pois já havia dias que ninguém comprava suas bulas. Certo dia, em lugar público, o buleiro estava jogando cartas com o Oficial de Justiça, quando este começa a acusá-lo de ladrão e de falsário. O vendedor de bulas responde e está armada a confusão, que só não terminou em tragédia porque o povo separou os litigantes.

Dias depois, igreja cheia, o buleiro está fazendo seu sermão, quando o Oficial de Justiça entra na igreja e começa a chamá-lo em voz alta de mentiroso, dizendo que as bulas são falsas, pedindo aos fiéis que não acreditem em nada do que o buleiro diz.

Algumas pessoas solicitam que o Oficial se retire para que não volte a acontecer uma briga. O buleiro, no entanto, roga que o Oficial permaneça na igreja, pois quer dizer algumas palavras para concluir o sermão que estava fazendo. Pede a Deus que intervenha e faça um milagre. Se o que afirma for mentira, que Deus o castigue, fazendo com que ele caia morto na hora. Mas, se quem está mentindo for o Oficial, que seja atingido pelo castigo divino.

Mal acabou de dizer essas palavras, o Oficial cai ao chão, começa a tremer e espumar pela boca, sinal de que a morte está chegando. O buleiro desce do púlpito e diz que a palavra divina reza que se perdoem os inimigos e roga a Deus que faça um milagre e salve o Oficial da morte. Proferidas essas palavras, o Oficial para de tremer e de espumar e se levanta são e salvo. O povo fica extasiado com o milagre.

Depois desse acontecimento, o buleiro nem precisava mais fazer sermão para vender suas bulas, pois o povo corria para comprá-las.

Lazarilho conta que, dias depois desse episódio, o buleiro recebe o Oficial de Justiça em sua casa e ambos riem muito comemorando o sucesso do negócio da venda de bulas, que agora eram vendidas como nunca.

Já se passaram quatro séculos que um espanhol anônimo denunciou esse golpe. Pelo que se vê, em essência, ele continua ainda a ser usado com recursos mais sofisticados. Nos tempos atuais, os buleiros se sofisticaram. As bulas que dão direito ao céu agora podem ser adquiridas pela internet e pagas por meio de cartões ou transferências via PIX. O número de buleiros e de suas vítimas incautas não para de crescer.


Para quem se interessar em ler Lazarilho de Tormes a melhor edição, em português, é a da Editora 34. É uma edição bilingue, com texto original nas páginas pares e excelente tradução para o português nas páginas ímpares. A tradução é de Heloísa Costa Milton e Antonio R. Esteves. A organização, edição do texto em espanhol, notas e estudo crítico é de Mario M. Gonzáles.

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References

References
1 Um buleiro era um funcionário eclesiástico – podia ser um padre – que levava ao público decretos ou bulas do Papa pelos quais os fiéis que contribuíssem para um determinada causa da Igreja (a cruzada contra os turcos, o resgate de cristãos cativos dos muçulmanos ou mesmo a conclusão da basílica de São Pedro em Roma) ganhariam o perdão ou indulgência da pena temporária, que de acordo com a teologia católica, todo pecado acarretava, mesmo que o pecador tivesse obtido o perdão deste pela confissão. Nota na p. 149, de Lazarilho de Tormes, Editora 34.

1 comentário


  1. Ótima conclusão: buleiros/pastores e oficiais de justiça/juízes, entre muitos dos vigaristas que emergiram dos esgotos com a internet, continuam a enganar incautos. Na semana passada, estava assistindo a uma série (ou um filme, não lembro), quando uma personagem fala que tudo daria certo porque , afinal, eles eram espanhóis, criadores do “Lazarilho de Tormes” No caso, o que daria certo era um golpe.

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