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Neste artigo, comento o conto “Kholstomér, a história de um cavalo”, de Liev Tolstói (1828 -1910), que está no livro O diabo e outras histórias. A tradução do conto foi feita diretamente do russo por Beatriz Morabito, Beatriz Ricci e Mayra Pinto e posfácio de Paulo Bezerra.
O título do conto já adianta ao leitor sobre o que se vai ler: a história de um cavalo. O conto é um excepcional exemplo de discurso figurativo, aproximando-se de uma fábula. Podem-se observar duas vozes principais: um narrador e, 3ª. pessoa que introduz na narrativa o cavalo Kholstomér, que conta sua história em 1ª. pessoa.
Kholstomér é um cavalo que nasceu diferente dos outros e, justamente por isso, entende os humanos melhor que eles próprios. Trata-se de um cavalo puro sangue, que é desprezado pelos diversos donos que teve, por ter a pelagem malhada. O cavalo faz reflexões de natureza filosófica sobre o comportamento humano, particularmente sobre como o ser humano relaciona-se com as coisas e pessoas pelo sentimento de propriedade. Suas reflexões, como se fosse um psicanalista, ancoram-se na linguagem humana. Como um analista da linguagem, destaca o caráter arbitrário do signo (“possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de palavras que convencionaram entre si“), a distância entre o dizer e o fazer, a relação entre os possessivos de primeira pessoa e as coisas.
Dada a sofisticação e profundidade das reflexões, a voz do cavalo Kholstomér é a manifestação de um discurso humano de caráter político, cuja intenção é fazer uma crítica a um tipo de sociedade assentada no direito de propriedade, e que também questiona a chamada racionalidade humana, invertendo os papéis racional / irracional, já que o cavalo é dotado de consciência.
A atribuição do ato de narrar ao cavalo tem função capital na construção da narrativa, porque estabelece um distanciamento daquele que narra em relação à matéria narrada, possibilitando a observação de comportamentos humanos que o próprio homem não mais observa por tê-los automatizados.
A seguir, destaco um trecho do conto em que o cavalo faz profundas reflexões sobre o comportamento humano. Nele, Kholstomér chama a atenção para o fato de que a relação que os homens estabelecem com as coisas e com os outros é marcada pela ideia de propriedade.
“Eu entendi bem o que eles disseram sobre os lanhões e o cristianismo, mas naquela época era absolutamente obscuro para mim o significado das palavras “meu”, “meu potro”, palavras através das quais eu percebia que as pessoas estabeleciam uma espécie de vínculo entre mim e o chefe dos estábulos. Não conseguia entender de jeito nenhum em que consistia esse vínculo. Só o compreendi bem mais tarde, quando me separaram dos outros cavalos. Mas, naquele momento, não houve jeito de entender o que significava me chamarem de propriedade de um homem. As palavras “meu cavalo”, referidas a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas quanto as palavras “minha terra”, “meu ar”, “minha água”.
No entanto, estas palavras exerciam uma enorme influência sobre mim. Eu não parava de pensar nisso e só muito depois de ter as mais diversas relações com as pessoas compreendi finalmente o sentido que atribuíam àquelas estranhas palavras. Era o seguinte: os homens não orientam suas vidas por atos, mas por palavras. Eles não gostam tanto da possibilidade de fazer ou não fazer alguma coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de palavras que convencionaram entre si. Dessas, as que mais consideram são “meu” e “minha”, que aplicam a várias coisas, seres e objetos, inclusive à terra, às pessoas e aos cavalos. Convencionaram entre si que, para cada coisa, apenas um deles diria “meu”. E aquele que diz “meu” para o maior número de coisas é considerado o mais feliz, segundo esse jogo. Para quê isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada. Muitas das pessoas que me chamavam, por exemplo, de “meu cavalo” nunca me montavam; as que o faziam eram outras, completamente diferentes. Também eram bem outras as que me alimentavam. As que cuidavam de mim, mais uma vez, não eram as mesmas que me chamavam “meu cavalo”, mas os cocheiros, os tratadores, estranhos de modo geral. Mais tarde, depois que ampliei o círculo das minhas observações, convenci-me de que, não só em relação a nós, cavalos, o conceito de “meu” não tem nenhum outro fundamento senão o do instinto vil e animalesco dos homens, que eles chamam de sentimento ou direito de propriedade”.