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Está na Netflix uma série de filmes de Pedro Almodóvar, com destaque a Mães paralelas, sua produção mais recente. Senti falta de um filme do diretor espanhol que já esteve disponível na plataforma. Refiro-me a Julieta, um filme 2016. Sorte que Julieta pode ser encontrado em outras plataformas de streaming. No artigo, falo das relações do filme Julieta com três contos da canadense Alice Munro, ganhadora do Nobel de literatura em 2013, que serviram de base para o roteiro do filme.
Os contos de Munro com que Julieta dialoga são Ocasião, Daqui a pouco e Silêncio, que fazem parte do livro Fugitiva, publicado em 2014 pela Biblioteca Azul com tradução de Pedro Sette-Câmara. O livro foi relançado 2017 na coleção Mulheres na Literatura, da Folha de S. Paulo, e vendido em bancas de jornal. Os três contos do livro, que têm a mesma personagem (Juliet) como protagonista, vêm nessa sequência e devem ser lidos nessa ordem. Os contos mostram três momentos da vida de Juliet.
Juliet nos é apresentada no conto Ocasião, quando tem 21 anos de idade, já graduada e com mestrado em letras clássicas. Nesse conto, também ficamos conhecendo seu companheiro, Eric. No filme, Juliet (Julieta) é interpretada por duas excelentes atrizes, Adriana Ugarte (Julieta mais jovem) e Emma Suárez (Julieta mais velha).
O filme costura dois momentos da vida protagonista. O recurso para unir os dois tempos é Julieta escrevendo à filha Antía, de quem se encontra separada (nos contos de Munro, a filha de Juliet se chama Penélope), como conheceu Xoan (nos contos de Munro, Eric), pai de Antía / Penélope, e os acontecimentos que sucederam ao casamento.
O tema do filme e dos contos é o da culpa trágica, visto na perspectiva da mulher. Os contos de Munro tratam a questão da culpa de forma mais profunda que o filme do diretor espanhol.
Há, nos contos, inúmeras referências à literatura grega, que a todo momento emerge na narrativa. No filme, essas referências são mais tênues. Nele, sabemos que Julieta é professora de literatura clássica e aparece numa cena logo no início do filme dando aula sobre a Odisseia, de Homero. No trem, ela aparece lendo o livro A tragédia grega, de Albin Lesky. No conto Ocasião, é o livro de E.R. Dodds. Essa referência é muito significativa, pois Julieta pesquisa sobre o menadismo e encontra no livro uma passagem que grifara sobre a justiça cósmica.
No conto, a conversa que Juliet mantém no trem com Eric está toda pontuada por referências à cultura grega. No conto Silêncio, há uma alusão ao romance História etíope, de Heliodoro, que trata da separação entre mãe e filha, Nele, o afastamento se dá porque a rainha da Etiópia, uma negra, teve uma filha branca e, por isso, teme ser acusada de adultério.
O conto Ocasião centra-se na ligação entre Juliet e Eric; o conto Daqui a pouco, na relação entre Juliet e seus pais e o conto Silêncio, no relacionamento entre Juliet e a filha, e tem como marco importante a morte de Eric num acidente, quando a filha, Penélope (Antía, no filme de Almodóvar), tem 13 anos e está em férias na casa de uma amiga, Heather, no conto; Beatriz (Bea, no filme).
Como na tragédia grega, Penélope/Antía descobre o que aconteceu antes do trágico acidente que matou o pai por afogamento e passa a culpar a mãe de quem se afasta completamente, ao fazer uma espécie de retiro espiritual. Juliet/Julieta tem alguns outros relacionamentos, mas sofre sozinha a separação da filha e a culpa pela morte do companheiro e pelo suicídio de um passageiro que viajava com ela no trem, quando foi encontrar Eric/Xoan. Mas as Moiras estão aí para tecer o destino trágico também da filha que, como a mãe, sentirá a culpa por um acontecimento trágico que lhe sobrevirá.
O filme de Almodóvar merece ser visto; mas, caso se queira mergulhar com profundeza no tema da culpa trágica, recomendo a leitura dos três contos de Alice Munro, na ordem em que aparecem no livro.
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