Intriga e fábula

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Neste artigo, trato de uma distinção fundamental para o trabalho com gêneros literários narrativos: a distinção entre intriga e fábula. Ressalto que essa nomenclatura varia de autor para autor. O que designo por intriga é também chamado de enredo ou trama. O que denomino fábula aparece em outros autores com o nome diegese.

Antes de estabelecer a distinção, é preciso destacar que o termo fábula não está sendo usado neste texto para designar um gênero que narra uma história que tem por personagens animais e que transmite um preceito moral (fábulas de Esopo, de La Fontaine). Fábula aqui é empregado para designar a história em si, aquilo que é narrado e que, depois de lido ou ouvido, se consegue resumir ou parafrasear, contando-a a alguém. A fábula é representada pelo conjunto de acontecimentos ligados entre si que são transmitidos ao leitor ou ao ouvinte pela leitura ou pela audição da obra. É pela fábula que o leitor ou ouvinte sabe o que aconteceu.

A intriga diz respeito à forma como o texto se estrutura, ou seja, refere-se às estratégias discursivas do narrador para apresentar ao leitor o narrado (a fábula), de modo a produzir certos efeitos de sentido. O retardamento da resolução cria efeito de suspense; a não revelação da causa ou do agente cria efeitos de mistérios, por exemplo.

A fábula seria o material pré-literário que é transformado em literário pela intriga. A forma como a fábula é apresentada ao leitor determinará inclusive a verossimilhança, levando o leitor ou o ouvinte a aceitar a história como coerente. A distinção entre fábula e intriga apresentada tem apenas caráter didático e metodológico. Na prática, quando se lê ou se ouve um texto não se faz a separação de uma da outra, pois o leitor / ouvinte toma contato com a fábula pela maneira como ela é narrada.

O leitor competente é aquele cuja leitura se volta não apenas para a história narrada (a fábula), mas também para os procedimentos utilizados pelo narrador para narrá-la, ou seja, para a construção da intriga. Em termos bastantes objetivos: o leitor não deve fazer a leitura procurando responder apenas à pergunta “o que o texto narra?”. O leitor experiente é aquele que sempre está se questionando: por que o narrador optou por contar a história desse jeito? Em razão disso, a leitura de um texto narrativo literário pressupõe que o leitor não se restrinja ao nível da fábula, mas que perceba como o autor a apresentou, por isso não tem se sentido uma prática comum entre estudantes (e em muitos casos estimulada por professores) de, em vez de lerem as obras solicitadas para os exames vestibulares ou provas, restringirem-se à leitura de resumos, já que, por mais bem elaborado que seja o resumo, ele costuma ficar restrito ao nível da fábula, não conseguindo reproduzir o trabalho do autor com a intriga. O mesmo ocorre com a adaptação de obras literárias para outras linguagens (cinema, televisão, história em quadrinhos). Se a fábula pode ser parafraseada, há uma intradutibilidade da intriga construída verbalmente para uma linguagem que se apoia em outro sistema de signos, pois no nível do discurso não são os acontecimentos narrados que contam, mas a forma de contá-los.

Entre os procedimentos adotados pelo autor para a construção da intriga estão o foco narrativo e a programação temporal.

Foco narrativo é a perspectiva de um narrador face a história narrada, a fábula. O foco narrativo diz respeito àquilo que o narrador é capaz de narrar levando em conta o que ele vê qualitativa e quantitativamente. Atente-se para o fato de que o narrador não deve ser confundido com o autor, o sujeito empírico, aquele que assina a obra. O narrador é uma voz que se esconde atrás do narrado com qual fala ao leitor/ouvinte. Sobre foco narrativo já tratei com mais detalhes em outro post. Clique aqui para ler.

A programação temporal diz respeito à forma como o narrador dispõe os fatos narrados no tempo. As narrativas se desenvolvem no tempo, há sempre um antes e um depois. No entanto, o narrador pode optar por narrar os acontecimentos não na ordem em que eles sucederam, um após o outro, do passado para o presente. Ele pode subverter a ordem cronológica por meio de anacronias, que consistem em recuos (chamados de analepse) ou antecipações de fatos futuros (chamados de prolepse). O narrador pode, por exemplo, começar a apresentar ao leitor a história já no meio dos acontecimentos (in media res) e depois ir recuando; ou, até mesmo, começar a história pelo seu final (in ultima res), como ocorre em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

Outros procedimentos para construção da intriga de narrativas são o encaixamento, a alternância e o encadeamento.

O encaixamento, também conhecido pelo nome de caixa chinesa ou boneca russa, consiste em encaixar uma história dentro de outra. O exemplo típico desse recurso pode ser encontrado nas narrativas do Livro das mil e uma noites. Sahrazade, para escapar da morte, conta ao sultão histórias valendo-se do artifício de encaixar uma nas outras, conseguindo assim sobreviver. No Livro das mil e uma noites, o ato de contar histórias torna-se o próprio motivo da narrativa, na medida em que temos uma história dentro de outra história, dentro de outra história e assim por mil e uma noites.

Na alternância, como o próprio nome indica, duas fábulas são contadas alternadamente, como em A confissão da leoa, de Mia Couto. No encadeamento, há justaposição de histórias de diferentes; assim que uma termina inicia-se outra, como em Dom Quixote, de Cervantes. Essas formas de estruturar o enredo correspondem aos processos sintáticos básicos: na alternância e no encadeamento há coordenação de fábulas, enquanto no encaixamento, ocorre a subordinação. 

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