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Os textos mantêm relação com outros textos com os quais dialogam. A isso, dá-se o nome de intertextualidade. Ocorre quando um texto incorpora outro, numa relação de concordância ou de discordância. Num trabalho acadêmico, normalmente se estabelecem relações intertextuais a fim de confirmar um determinado ponto de vista. Num debate, costuma-se trazer o texto do outro a fim de contestá-lo, desqualificando-o.
Interdiscursividade, como o próprio nome indica, tem a ver com discurso. Não há um único conceito de discurso. Dependendo da corrente teórica adotada, têm-se conceituações diferentes. Discurso pode ser entendido como sinônimo de enunciado, isto é, a realização da língua por meio de um ato de vontade de um sujeito, o enunciador. Na distinção que Saussure faz entre língua e fala, o discurso corresponde à fala. O termo discurso tem um outro sentido, que vai além da materialidade linguística do enunciado, já que leva em conta não apenas o texto, mas também o contexto sócio-histórico que o determina, isto é, o texto acrescido de suas condições de produção e de recepção. Nesse caso, o termo discurso designa o sistema que permite produzir um conjunto de textos, ou o próprio conjunto de textos produzidos.
No discurso de um sempre estará presente o outro, ou seja, todo discurso é marcado pela heterogeneidade, uma vez que é condição do discurso se constituir por oposição a outros. Como traz em si a presença do outro, o discurso se caracteriza por ser a reunião de diferentes vozes, que podem estar mostradas ou não no texto.
Heterogeneidade
A ideia de que o sujeito é autônomo ao produzir o discurso é uma falácia, pois o discurso não é homogêneo, já que nele há a presença de outras vozes, produzidas por outras fontes enunciativas. O discurso é, pois, constituído por uma pluralidade de vozes. A isso damos o nome de polifonia, palavra proveniente do grego, formada por poli= muitas, várias e fonia=voz. Quando alguém afirma que não assiste ao BBB, duas vozes emergem desse enunciado, que exprime dois pontos de vista distintos. À voz do enunciador, que nega assistir ao Big Brother Brasil, se contrapõe a voz daqueles que assumem assistir ao BBB. Em outros termos, a negação se opõe a uma afirmação precedente.
Esse exemplo ilustra que, no discurso, há presença de vozes que podem exprimir pontos de vista, ideologias e crenças diferentes. O discurso de um se constitui polemicamente em relação ao discurso do outro. Ao dizer que não assiste ao BBB, o enunciador sanciona negativamente os valores veiculados por esse tipo de programa, num discurso que se opõe ao daqueles que são simpatizantes de reality shows.
Tome-se outro exemplo bem simples. O leitor certamente conhece a fábula A cigarra e a formiga, atribuída a Esopo. Em síntese, ela nos conta que, durante o verão, enquanto a formiga trabalhava duro, a cigarra vivia cantando. Quando chega o inverno, ela se vê sem alimentos, enquanto a formiga tinha alimento de sobra por ter trabalhado duro durante o verão.
O discurso da fábula se constitui como uma valorização do trabalho e da previdência, que se opõe ao que valoriza viver o agora sem se preocupar com o que possa acontecer no futuro. São duas vozes que polemizam, porque veiculam valores opostos; uma, figurativizada na formiga; outra, na cigarra. Ao assumir um valor para condenar outro, a fábula tem um caráter pedagógico moralizante.
Nesses exemplos, a heterogeneidade é chamada de dialogismo. Para o teórico russo, Mikhail Bakhtin, o dialogismo é constitutivo da linguagem humana, uma vez que na voz de um enunciador se faz ouvir a voz do outro. Assim, Bakhtin refuta a ideia de autonomia do discurso, vale dizer, o sujeito falante não é a única fonte de seu dizer.
O conto Vestido de preto, de Mário de Andrade, começa assim: “Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade”. Na voz do narrador de Vestida de preto, emerge outra voz: a daqueles que andam preocupados em definir o que seja um conto, embora não os nomine, valendo-se de um sujeito indeterminado (andam). Nos exemplos apresentados, a heterogeneidade não está mostrada no texto, ou seja, não há identificação da outra voz com a qual o discurso dialoga. Há casos, porém, em que ocorre essa identificação. Quando isso acontece, temos heterogeneidade mostrada.
Nessa forma de heterogeneidade, a voz do outro é localizável na cadeia do discurso daquele que enuncia, ou seja, a voz do outro se explicita, se mostra. Nesse caso, ao contrário da heterogeneidade constitutiva, a presença da voz do outro é intencional. Interessa por ora apenas três formas de heterogeneidade mostrada: o discurso direto, o discurso indireto e as aspas.