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Neste espaço, trato de questões de língua e de literatura. Quando falo em literatura, procuro comentar algumas obras que li e que considero relevantes. Como se trata de um blogue para o público geral e não para especialistas, procuro não enveredar para aspectos teóricos. Quando trato de língua, isso já é um pouco mais difícil. Falar de língua é um exercício de metalinguagem, porque se usa a língua para falar dela e isso acaba obrigando o autor trazer para seu texto alguma teoria. Falar em literatura é falar em ficção, pois uma das características dos textos literários é seu caráter ficcional. Embora eu saiba que todos têm uma ideia bem formada do que significa ficção, acho oportuno dizer algumas breves palavras sobre o assunto, pois isso pode ajudar a apreciar melhor obras literárias. Vamos então ao conceito de ficção.
O sentido de uma palavra é dado por uma relação, em geral com seu contrário. Por exemplo o sentido de cozido se estabelece por oposição a cru; o sentido de heterossexualidade se dá por oposição a homossexualidade. Antes que o homem descobrisse o cozimento de alimentos, não existia nas línguas o termo pra designar cru, pois não se fazia necessária a distinção.
O sentido da palavra ficção é dado por oposição à palavra realidade. Fictício é aquilo que não é real, portanto se trata de algo que é construído voluntária ou involuntariamente pela imaginação. Os dicionários definem ficção como “ato ou efeito de fingir”, “criação imaginária”; “simulação”, “fingimento”, “criação ou invenção de coisas imaginárias”.
A ficcionalidade de uma obra pode ser mais intensa ou menos intensa, dependendo da relação que guarda com o mundo natural. Nas fábulas, nos contos maravilhosos e fantásticos e nas narrativas de ficção científica, tem-se alto grau de ficcionalidade, já que o afastamento da realidade objetiva é bastante grande. Por outro lado, há obras de ficção que, de uma maneira ou outra, guardam uma relação bem próxima com o real. Nesse caso, o grau de ficcionalidade é menor. Certamente, o leitor já viu algum filme em que consta o aviso “Baseado em fatos reais”. Os fatos são reais, mas a construção narrativa que reproduz aqueles fatos é ficcional. O narrador (ou diretor do filme) seleciona alguns fatos para apresentar, omite outros, de modo que a narrativa lembra de certa forma o real (para quem conhece o real, evidentemente), mas não deixa de ser ficcional.
Mesmo quando se baseia num fato real, pode haver simulação, criação, ou seja, o ponto de partida é verdadeiro, mas a história é criada pela imaginação. É o que ocorre, por exemplo, em romances históricos. A obra A festa do Bode, do escritor peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura, relata os acontecimentos ocorridos na República Dominicana durante a ditadura do general Rafael Leonidas Trujillo Molina, o Bode, entre os anos 1930 e 1961. Nesse romance, personagens e acontecimentos reais convivem com personagens e acontecimentos fictícios. Um romance não é, pois, o relato de um acontecimento verdadeiro, mas verossímil, isto é, semelhante à verdade num dado universo sociocultural. A palavra verossímil significa exatamente isso: vero (verdadeiro); símil (semelhante). No próximo post, tratarei da verossimilhança com mais detalhes.
Mesmo quando um conto ou um romance reconstroem um acontecimento real, há a voz do narrador, que usa estratégias narrativas e discursivas, para tornar criativo aquilo que se conta, estimulando a imaginação do leitor. O narrador pode, por exemplo, narrar o fato em uma sequência temporal diferente da que aconteceu a fim de, por exemplo, criar efeitos de suspense.
A ficção tem um caráter contratual, ou seja, autor e leitor, diretor e espectador num filme ajustam tacitamente que o que será lido, ou visto na tela não é real, mas produto de uma imaginação criadora, ou seja, ficção. Em certos livros e filmes, há inclusive uma advertência para o fato de que o que se verá ou lerá só ocorreu no universo da ficção. Portanto, o horizonte de expectativas de quem lê um conto ou assiste a um filme é de que se trata de obra ficcional e assim deve ser entendida.
A não percepção de que a obra é ficcional pode acarretar situações às vezes esdrúxulas, como as em que certas pessoas que, ao encontrarem em público um ator que desempenha o papel de vilão numa novela de tevê, passam a ofendê-lo por tomarem como real o que só existe no universo da ficção. A respeito disso, vale registrar um fato ocorrido em 1882 na cidade norte-americana de Baltimore. No teatro, era encenada a peça Otelo, de Shakespeare. No momento em que Otelo vai matar Desdêmona, um soldado encarregado da guarda do teatro atira contra o ator que interpretava Otelo para salvar Desdêmona. O mais grave é que, indagado por que atirou no ator, o guarda responde que não iria admitir que um negro tirasse a vida de uma branca. Além de não distinguir realidade de ficção, era racista.
É preciso observar, no entanto, que em certas narrativas o autor intencionalmente procura criar uma ilusão de realidade ao ancorar o texto ficcional a elementos do real, nomeando, por exemplo, lugares e coisas. Com isso, passa ao leitor a impressão de que aquilo que lê é real. Mas insisto: é apenas um efeito de sentido de realidade, uma ilusão de real. O trecho que reproduzo a seguir, extraído do livro “Eles eram muito cavalos”, de Luiz Ruffato, é um exemplo desse procedimento.
“O elástico preto prende os cabelos num rabo-de-cavalo, caminha devagar pela rua Sérgio Cardoso enfiado numa camiseta preta, estampa do Halloween, calça big cor indefinível, tênis Reebok imundo, uma argola pendendo do lóbulo da orelha direita, na padaria da esquina compra um maço de L&M, um mini-isqueiro Bic. Toma o ônibus até a estação Saúde do metrô, baldeia na Sé para a estação República. Da escada-rolante emerge, o Edifício Itália funda-se nos seus ombros, a fumaça de carros e caminhões tachos de acarajés coxinhas quibes pastéis, vozes atropelam-se, amalgamam-se, aniquilam-se, em bancas de revistas, jornais, livros usados, pulseiras brincos colares gargantilhas anéis, lã em gorros ponches blusas mantas xales, pontos-de-ônibus lotados, trombadinhas, engraxates, carrinhos-de-pipoca, doces caseiros, vagabundos, espalhados caídos arrastando-se bêbados mendigos meninos drogados aleijados.” Obs.: a pontuação no texto original é exatamente assim (sem as vírgulas).
O uso de expressões como “Rua Sérgio Cardoso”, “tênis Reebok”, “maço de L&M”, “mini-isqueiro Bic”, “estação Saúde do metrô”, “baldeia na Sé”, “estação República”, “Edifício Itália”, confere ao texto um efeito de sentido de realidade, na medida em que essas expressões estão ancoradas em lugares e coisas reais. Em outras palavras: a iconização cria a ilusão de que o que se narra é real.
Finalizando, acrescento que o caráter ficcional da narrativa não de restringe à história narrada (aos acontecimentos), mas à narrativa como um todo. Assim, personagens, narrador, tempo e espaço são também construções ficcionais.