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Costuma-se afirmar que a literatura se caracteriza por seu caráter ficcional. Guimarães Rosa, Mia Couto, Cora Coralina, por exemplo, usam a palavra estória (com e inicial e sem h) para marcar o caráter ficcional de sua produção literária, distinguindo-a de história (com agá), que seria reservada para a narração de acontecimentos reais. O vocábulo estória, aliás, já é registrado no Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Volp) e nos principais dicionários.
Os dicionários definem ficção como “ato ou efeito de fingir”, “criação imaginária” (Houaiss; Villar, 2009); “simulação”, “fingimento”, “criação ou invenção de coisas imaginárias” (Ferreira, 1999).
Portanto, ficcional se opõe a real. Uma obra de ficção não relata um fato ocorrido, mas um fato criado pela imaginação do autor.
Fernando Pessoa, num poema bastante conhecido, já chamava a atenção para o caráter ficcional da literatura, ao afirmar que a dor relatada na poesia não é uma dor real (é dor fingida).
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só as que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
Fonte: Pessoa, 1972, p. 164-165.
Mesmo quando se baseia num fato real, pode haver simulação, criação, ou seja, o ponto de partida é verdadeiro, mas a história é criada pela imaginação. É o que ocorre, por exemplo, em romances históricos. A obra A festa do Bode, do escritor peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura, relata os acontecimentos ocorridos na República Dominicana durante a ditadura do general Rafael Leonidas Trujillo Molina, o Bode, entre os anos 1930 e 1961. Nesse romance, personagens e acontecimentos reais convivem com personagens e acontecimentos fictícios. Um romance não é, pois, o relato de um acontecimento verdadeiro, mas verossímil, isto é, semelhante à verdade num dado universo sociocultural. A palavra verossímil significa exatamente isso: vero (verdadeiro); símil (semelhante).
A verossimilhança está ligada a uma estratégia discursiva para fazer parecer verdadeiro aquilo que se enuncia. A novela A metamorfose, de Franz Kafka se inicia no momento em que o protagonista, Gregor Samsa, acorda e se vê transformado num inseto monstruoso. Leia a seguir como se inicia essa novela.
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o resto do corpo, tremulavam desamparadas diante de seus olhos. Fonte: Kafka, 1997, p. 7.
Nosso conhecimento de mundo atesta que não é plausível ir dormir numa noite como humano e acordar na manhã seguinte “metamorfoseado num inseto monstruoso”, mas Kafka nos conta o fato de modo que aceitamos aquilo como verdadeiro no universo da ficção, ou seja, Kafka inicia sua novela transpondo o leitor para uma realidade que ele sabe existir somente no universo da ficção, mas isso não impede que aquele que lê aceite a narrativa como ver-dadeira, dada sua coerência interna. Em decorrência da verossimilhança, no romance Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, aceitamos que Vadinho, depois de morto, volte para dormir com a ex-mulher, Dona Flor, que já estava casada com o farmacêutico Teodoro.
Ainda em relação à ficcionalidade, chamamos a atenção para seu caráter contratual, o que significa que o caráter ficcional de um texto reside num contrato entre autor e leitor, em que o primeiro tem por intenção produzir um texto ficcional e o segundo, aceitando o pacto ficcional proposto pelo autor, se dispõe a ler o texto como uma obra de ficção. A não leitura como ficção de um texto ficcional pode levar a situações cômicas como aquelas em que pessoas na rua ofendem um ator de novela de tevê por encarnar o papel de vilão. A respeito disso, vale registrar um fato ocorrido em 1882 na cidade norte-americana de Baltimore. No teatro, era encenada a peça Otelo, de Shakespeare. No momento em que Otelo vai matar Desdêmona, um soldado encarregado da guarda do teatro atira contra o ator que interpretava Otelo para salvar Desdêmona.
Em diversas narrativas literárias, como Dom Quixote, de Cervantes, explora-se o caso de alguma personagem ter seu comportamento influenciado pelo fato de serem processados como realidade fatos ficcionais relatados nas narrativas lidas. O já velho Alonso Quijano, depois de ler muitos livros de cavalaria, crê que é um cavaleiro andante, Dom Quixote, e que uma camponesa, Aldonza Lorenzo, é sua dama, Dulcineia del Toboso, e sai montado em um velho cavalo, paramentado como cavaleiro andante, acompanhado de seu fiel escudeiro, Sancho Pança, passando a ver inimigos que na realidade não existem.
No romance O guarani, de José de Alencar, no Capítulo III da segunda parte, o narrador, para reforçar o pacto ficcional, chega a afirmar que a história que está narrando é verídica: “Mas não antecipemos; por ora ainda estamos em 1603, um ano antes daquela cena, e ainda nos falta contar certas circunstâncias que serviram para o seguimento desta verídica história” (Alencar, 2012, p. 113, grifo nosso).
Em A emparedada da rua Nova, de Carneiro Vilela, que foi adaptada para a televisão com o nome de Amores roubados, o autor vai além, deixando o leitor na dúvida se o fato relatado ocorreu realmente ou se se trata de ficção. A certa altura, chega a afirmar:
“Justamente a uma dessas casas vamos conduzir o leitor; unicamente porém, como escrevemos um romance real e verídico, não declaramos aqui, por escrúpulo bem entendido e por conveniências que todos compreenderão, nem o gênero do negócio nem o número da casa” (Vilela, 2013, p. 46).
Observe a expressão “romance real e verídico”; nela, a palavra romance, que remete ao universo ficcional, está determinada por dois adjetivos que remetem ao verdadeiro.
A propósito, em romances costuma haver a advertência ao leitor de que a história e as personagens são reais apenas no universo da ficção, como se observa no romance O drible, de Sérgio Rodrigues (2013): “Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção, não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles”.
Quando nos referimos ao caráter ficcional da literatura, não estamos afirmando que apenas a história e as personagens são ficctícias. Aquele que narra também é uma obra de ficção. Marçal Aquino começa seu romance Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios assim:
Não adianta explicar. Você não vai entender.
Às vezes, como num sonho, vejo o dia da minha morte. É uma coisa meio espírita, um flash. E, embora a mulher não apareça, sei que é por causa dela que estão me matando. E tenho tempo de saber que não me deixa infeliz o desfecho da nossa história. Terá valido a pena.
Fonte: Aquino, 2005, p. 11.
Evidentemente, não é Marçal Aquino quem fala no texto, mas um narrador criado por ele. Isso não ocorre apenas nas narrativas de focalização interna, isto é, aquelas em que o narrador participa da história. Nas narrativas de focalização externa, em que o narrador não é participante da história, aquele que narra também é uma criação ficcional do autor.
Se uma das características da literatura é seu caráter ficcional, a recíproca não é verdadeira, pois não é qualquer história inventada que pode ser considerada literária. Romances baratos, comercializados em bancas de jornais, com capas sugestivas, que contam histórias açucaradas e com final feliz depois de a heroína passar inúmeras provações são evidentemente obras de ficção, mas não são consideradas literárias, por faltar um elemento essencial: a legitimação institucional.
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Referências
ALENCAR, J. O guarani: romance brasileiro. 27. ed. São Paulo: Ática, 2012.
AQUINO, M. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia da Letras, 2005.
FERREIRA, A. B. de H. Dicionário Aurélio eletrônico século XXI.Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999. 1 CD.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss; Objetiva, 2009. 1 CD-ROM.
KAFKA, F. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
PESSOA, F. Obra poética em um volume. Rio de Janeiro: Aguilar, 1972.
VILELA, C. A emparedada da rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013.