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Língua é o sistema abstrato pertencente a uma comunidade de falantes (língua portuguesa, língua espanhola, língua francesa, por exemplo). O termo discurso, embora possa se referir a várias coisas, neste artigo será utilizado no sentido de realização da língua por meio do falante.
A distinção entre o lado social – a língua – e o individual da linguagem humana – o discurso – foi estabelecida pelo linguista suíço Ferdinand Saussure (1857 – 1913), numa obra chamada Curso de linguística geral, publicada postumamente em 1916, por dois de seus discípulos. Saussure chamou de langue (língua) o lado abstrato e social da linguagem e de parole (fala ou discurso) o lado individual e concreto.
Destacamos que o discurso se manifesta em textos e que esses resultam da superposição de dois planos que se pressupõem, um conteúdo, de ordem cognitiva, e uma expressão, de ordem material, que manifesta o conteúdo. Por expressão, entende-se uma linguagem qualquer, seja verbal, não verbal ou sincrética, por isso os textos serão verbais, não verbais ou sincréticos. Neste artigo, interessa-nos particularmente os discursos manifestados por meio de uma linguagem verbal, ou seja, os textos verbais. Esquematizando:
Veremos que a primeira etapa, isto é, a passagem da língua para o discurso se dá pela enunciação. O discurso, quando manifestado por uma expressão qualquer, se converte em texto.
A palavra enunciação se liga ao verbo enunciar, que significa dizer. Enunciação é um substantivo abstrato e significa o ato de dizer. Em ambas as palavras, aparece o radical de origem latino –nunci, presente nos verbos anunciar, denunciar, pronunciar e nos substantivos anúncio, anunciante, pronúncia, denúncia, todas elas ligadas ao campo semântico do dizer. Como sempre é mais fácil partir do concreto para o abstrato, partiremos do enunciado para explicar a enunciação.
Observe o exemplo abaixo:
“Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.
Esse é o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Houve alguém (não importa quem no momento) que se apropriou da língua e, por um ato de vontade, a pôs em funcionamento, ou seja, converteu a língua, o sistema, em discurso, o processo, o acontecimento e, valendo-se de uma expressão, no caso a língua portuguesa, manifestou esse discurso por meio de texto verbal.
A passagem da língua para o discurso chamamos de discursivização e a passagem do discurso para o texto chamamos de textualização, que é a manifestação do discurso por meio de uma expressão qualquer, conforme o esquema a seguir.
Observe que o discurso ainda não é texto, ele pertence ao plano do conteúdo. Para que haja texto, é necessário que o discurso se manifeste por meio de uma expressão.
Damos o nome de enunciado ao produto da enunciação. A noção de enunciado, portanto, se confunde com a noção de texto que apresentamos.
Os enunciados são únicos e irrepetíveis, ou seja, sempre que alguém se apropria da língua e diz algo, temos um enunciado, não importando sua extensão. Assim, o simples ato de dizer bom dia a alguém até um extenso romance, passando por uma reportagem publicada numa revista são exemplos de enunciados.
Não devemos confundir enunciado com frase, pois se trata de conceitos relativos a domínios distintos. Usamos o termo frase quando estamos no domínio da gramática, que a define como uma palavra ou um conjunto de palavras que possui sentido completo. Falamos em enunciado quando nos referimos a realizações efetivas da língua em situações concretas de interlocução. Uma mesma frase pode corresponder a incontáveis enunciados. Uma frase como “bom dia” será um enunciado cada vez que for enunciada por alguém. O bom dia que você diz a um familiar quando acorda não é o mesmo bom dia que você diz ao porteiro do prédio, ou a seu colega quando chega ao trabalho. A frase é a mesma, mas os enunciados são distintos, porque são produtos de enunciações distintas. Por outro lado, um enunciado pode comportar várias frases. Uma notícia de jornal, por exemplo, é um enunciado formado por muitas frases.
Como vimos, a enunciação pressupõe a existência de um sujeito que, por um ato de vontade, se apropria da língua e a converte em discurso. A esse sujeito que põe a língua em funcionamento, damos o nome de enunciador. Como quem diz algo sempre diz algo a alguém, haverá sempre um enunciatário, aquele a quem se diz. Resumindo o que dissemos até aqui.
Enunciação: é o ato de dizer e está pressuposta pela existência do enunciado. Trata-se do ato pelo qual um sujeito se apropria das virtualidades da língua e a converte em discurso.
Enunciado: o produto da enunciação. Aquilo que é dito, oralmente ou por escrito, independentemente de sua extensão. É o acontecimento linguístico, o discurso enunciado. Os enunciados são únicos e irrepetíveis.
Enunciador: aquele que diz, aquele que se apropria do sistema da língua e a converte em discurso, que, manifestado por meio de uma expressão, constituirá os textos. É o sujeito que se constitui no e pelo discurso. O enunciador sempre se dirige a alguém, presente ou ausente; real ou presumido.
Enunciatário: aquele para quem se diz. Como a linguagem humana é marcada pelo dialogismo, ou seja, sempre que um eu, o enunciador, toma a palavra, dirige-se a um tu/você. Assim como o enunciador, o enunciatário é constituído no e pelo discurso .
Embora a maioria das pessoas, identifique apenas no enunciador o produtor do texto, é preciso ressaltar que o enunciatário também é produtor do texto porque é ele quem constrói o sentido que, muitas vezes, não é o mesmo que o enunciador pretendeu dar a seu texto. Além disso, ao produzir o texto, o enunciador cria uma imagem do enunciatário. Essa imagem determinará, consciente ou inconscientemente, as escolhas e os modos de dizer que resultarão no enunciado.
É importante assinalar que o enunciador deixa informações pressupostas ou subentendidas, esperando que o leitor ou o ouvinte infira as informações não explicitadas no texto. Por exemplo, quando alguém vê numa estrada uma placa com os dizeres “Pare fora da pista”, entende que não o enunciador, “economizando” palavras está dizendo: “Em caso de pane no veículo, pare fora da pista” ou “Em situação de emergência, para fora da pista”.
Nos textos escritos, muitas vezes, o enunciatário é o leitor presumido, ou seja, uma imagem que o enunciador constrói do leitor. Acrescentamos ainda que, dado o caráter dialógico da linguagem humana, as posições de enunciador (eu) e enunciatário (tu/você) se invertem constantemente. O enunciatário, ao tomar a palavra, passa a enunciador e aquele que, no momento anterior, exercia papel de enunciador passa a enunciatário, como você pode observar principalmente nos atos de conversação espontânea, ou em textos escritos que reproduzem a conversação (diálogos).
O assunto enunciação é vasto. Neste artigo, limitamo-nos a uma introdução ao tema, que será retomado oportunamente em outros posts. A enunciação é tratada em nosso livro Língua portuguesa: desenvolvendo competências de leitura e escrita, publicado pela Editora Saraiva. Para mais informações, clique no link abaixo.