É que somos muito pobres

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O escritor mexicano Juan Rulfo (1917 – 1986) é mais festejado pelo seu romance Pedro Páramo, uma obra-prima sem dúvida. Mas Rulfo é também excepcional contista. Um de seus contos de que mais gosto chama-se “É que somos muito pobres” e está no livro Chão em chamas, publicado no Brasil pela Edições BestBolso, num livrinho em formato pequeno com 174 páginas, com excelente tradução de Eric Nepomuceno.

A frase que abre o conto, “Aqui tudo vai de mal a pior”, antecipa ao leitor a tragédia que será narrada. “É que somos muito pobres”, como se depreende do título, é uma narrativa em 1ª pessoa, na qual se narra a desgraça que se abate numa família. Uma semana antes dos fatos que são narrados no conto, a família já havia enterrado uma tia.

Segue o filho narrando o acontecimento central do conto, uma terrível enchente que assola a região onde ele mora com a família. São três noites de chuva intensa que avolumam as águas do rio, fazendo-o sair do leito e arrastando com ele tudo o que encontrava, levando o pouco que as famílias pobres tinham.

O narrador e sua irmã, Tacha, uma jovem cujos peitos só agora começam a crescer, ficam a olhar a destruição provocada que levara árvores, pontes e animais. O narrador descobre que a enchente levara Serpentina, uma vaca que o pai dera a Tacha. Sai pelo local, perguntando se alguém vira a vaca. Um morador informa que vira o animal, já com as patas para cima, ser arrastado pela correnteza. Sobre o bezerro, filho de Serpentina, nenhuma informação conseguiu obter.

A perda do animal é o trágico do conto, sobretudo pelo tragédia que há de sobrevir. Diz o narrador: “A aflição que todo mundo tem lá em casa é pelo que possa acontecer no dia de amanhã, agora que minha irmã Tacha ficou sem nada”. O pai dera, à custa de muito trabalho, a vaca para a filha para que ela tivesse “algum capitalzinho e não acabasse caindo na estrada e virando puta feito minhas outras duas irmãs mais velhas”.

O pai, que expulsara de casa as duas filhas mais velhas, acreditava que a pobreza é que fez com que elas se prostituíssem.  Assim, a vaca seria a forma de evitar que a mais nova seguisse o exemplo das mais velhas. Morta a vaca, o destino da irmã está traçado. A esperança que resta à família é que o bezerro tenha escapado. “Tacha chora ao sentir que sua vaca não volta mais porque o rio a matou”.


Permitam-me fazer um comentário de natureza linguística sobre o título do conto. Os gramáticos dizem que a expressão é que, como consta no título, é uma partícula expletiva ou realce, que pode ser retirada sem prejuízo ao sentido e lá está apenas por motivos estilísticos.

Que ela pode ser tirada não resta dúvida. Poder-se-ia dizer simplesmente “somos muito pobres”. Mas o sentido seria o mesmo? Evidente que não, pois o é que não está lá apenas para enfeitar, para dar realce ao que se diz. Na verdade ele possui um valor argumentativo bastante forte. Os linguistas chamam expressões desse tipo de operadores argumentativos (ver post sobre esse assunto clicando aqui).

Um operador argumentativo tem a função de orientar o que se diz para uma determinada conclusão e não outra. Quando se diz “somos muito pobres”, tem-se um enunciado descritivo. Por meio dele se mostra um estado. Ao dizer “é que somos muito pobres”, o enunciado não descreve apenas uma situação, mas orienta o leitor a uma determina conclusão: isso acontece porque nós somos muito pobres, ou seja, se não fôssemos muito pobres, isso não ocorreria. O conto tem um caráter fatalista que o título revela. Se o título fosse apenas Somos muito pobres, o efeito não seria o mesmo.   


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