Decameron

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A motivação para este artigo surgiu de um post que circulou nas redes sociais em que o pastor Silas Malafaia, contrariando todas as recomendações das autoridades sanitárias e da comunidade científica, que solicitavam que se evitassem aglomerações por causa do coronavírus, insistia em dizer que não iria suspender os cultos de sua igreja.

O que tem a ver as declarações de Malafaia e o coronavírus com o Decameron? Explico. O Decameron é um conjunto de novelas escritas por Giovanni Boccaccio (1313 -1375) logo após a Europa ter sido devastada ela peste negra de 1348.

Sete jovens mulheres, três cavalheiros, fugindo da peste, vão de Florença para uma colina próxima, acompanhados de sete criados. Para passar o tempo, estabelecem que se reuniriam à tarde para contar histórias até a hora da ceia. São essas histórias, ou novelas, que constituirão o Decameron. No artigo, comentarei uma dessas novelas, conhecida como A novela de Frei Alberto de Ímola.

Nesta novela, a narradora é Pampinea que, logo no início da história, enuncia um provérbio que faz rir a todos: “O mau tido por bom pode fazer o mal sem ser notado“. Em resumo, ela narra que um certo frei Alberto, um devasso que fugira de Ímola para Veneza, quer conquistar a bela veneziana Lisetta, cujo marido está viajando. Para isso, a convence de que ela receberá em sua casa a visita do anjo Gabriel, que aparecerá em forma humana no corpo dele (frei Alberto).

Lisetta era bastante ingênua e, quando frei Alberto aparece em sua casa dizendo-se ser o anjo Gabriel, deixa-o entrar. O falso anjo então se aproveita de Lisetta, deitando-se na cama com ela. A inocente Lisetta se sente maravilhada e conta à sua comadre que recebera a visita do anjo Gabriel com o corpo do frei Alberto e que fizeram amor várias vezes. Acrescenta ainda que o “anjo” tinha um desempenho na cama muito melhor do que o do marido.

A comadre, percebendo a falcatrua armada e que alguém está se aproveitando da tola Lisetta, relata o ocorrido para os cunhados de Lisetta, que se unem para desmascarar o abusador, que consegue escapar da casa de Lisetta, mas é capturado depois.

A novela, como se vê, é uma crítica à hipocrisia de religiosos. No início, diz o narrador:

[religiosos] com panos largos e longos, rostos artificialmente pálidos, vozes humildes e mansas ao pedir, mas duras e ferozes ao condenar nos outros os seus próprios vícios, querem fazer crer que a salvação consiste em que lhe doemos tudo sem que eles nada nos deem; além disso, não acham que precisam conquistar o Paraíso como nós, mas, quase como se fossem seu dono e senhor, dão a cada um que morre um lugar melhor ou pior, a depender da quantidade de dinheiro que lhes é deixada […].

Pena que ainda haja muita gente como Lisetta, que não percebe que o mau, se passando por bom, espalha o mal.

Há várias edições em português do Decameron de Boccaccio. A Editora Nova Fronteira em dois volumes é muito bem cuidada. Para quem se interessar em saber mais sobre essa novela de Boccaccio, há um ensaio excelente sobre ela chamado “Frate Alberto”, que está no livro Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, de Erich Auerbach, publicado pela editora Perspectiva.

Nosso livro Leitura do texto literária, publicado pela Editora Contexto, pode ser encontrado na Amazon.

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