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Dos textos literários que tratam do tema da amizade, gosto muito de uma novela pouco badalada de Nikolai Gógol (1809 – 1852) chamada A briga dos dois Ivans. Há em português uma edição da Grua Livros (2014, 96 p.), traduzida diretamente do russo por Graziela Schneider. O livro pertence a uma coleção muito boa chamada ‘A arte da novela’. São livros em formato pequeno, com preço bastante acessível, que trazem histórias curtas de autores diversos. Nessa coleção, podem ser encontrados, entre outros, os seguintes títulos: Benito Cereno, de Herman Melville; Os mortos, de James Joyce e O colóquio dos cachorros, de Cervantes, que já comente no blogue.
A briga dos dois Ivans é um texto de leitura agradabilíssima com muito humor, chegando, em algumas passagens, ao pastelão. O humor da novela é o invólucro de um tema sério, o da amizade (o tema do perdão, decorre do tema central). A história é resumidamente o que segue.
Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch de igual só têm o nome. São diferentes em tudo, tanto no aspecto físico quanto no comportamento. Ivan Ivánovitch é eloquente, magro, alto; Ivan Nikíforovitch é baixo e gordo. É também mais calado, mas quando fala costuma ser muito ferino. Apesar das diferenças, os vizinhos nutrem uma grande e antiga amizade, admirada pelos habitantes da pequena Mírgorod, na Ucrânia.
Certo dia Ivan Ivánovitch vê a empregada de Ivan Nikíforovitch estender algumas roupas e objetos para tomar sol e se interessa por uma arma de propriedade do vizinho. Procura-o, propondo a troca da arma por uma porca.
Como Ivan Nikíforovitch não aceita a proposta, Ivan Ivánovitch propõe dar também dois sacos de aveia. Os amigos começam a discutir até que Ivan Nikíforovitch chama o vizinho de raposa velha. O uso dessa expressão rompe a amizade entre ambos.
Ivan Ivánovitch vai à Justiça para processar Ivan Nikíforovitch, que, por sua vez, também processa o vizinho. As acusações que um faz ao outro passam a ser gravíssimas. Ivan Ivánovitch acusa Nikíforovitch de querer incendiar sua casa; este, por sua vez, acusa o outro de roubo e de tentativa de homicídio.
O juiz procura, por todos os meios, não levar adiante os processos, tentando conciliar os litigantes. A cidade toda, sabendo da amizade dos dois, se mobiliza para reaproximar os amigos. Nada, no entanto, produz efeito.
Os moradores resolvem então organizar um jantar e conseguem fazer com que os dois vizinhos estejam presentes. Armam tudo para que fiquem frente a frente e, quando quase estão se reconciliando, Ivan Nikíforovitch apenas cita a expressão que deu origem à briga. Pronto. A desavença recomeça. Não há reconciliação possível.
O tempo passa, os dois envelhecem e as ações que um move contra o outro ainda estão emperradas na burocracia do tribunal aguardando julgamento.
A briga dos dois Ivans é uma novela que, por trás da leveza e do humor escancarado, nos leva a uma reflexão profunda: a briga dos dois Ivans não é por que um chamou o outro de raposa velha. O proferimento da palavra apenas fez aflorar uma divergência interna, alojada tão profundamente que os dois Ivans nem mais tinham consciência dela.
Não brigamos por causa de palavras inoportunas, elas são apenas o gatilho fatal que dispara o fim à amizade.