Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso e a interdição do incesto

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São vários os temas presentes em Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso (1912 – 1968), publicada em 1959 e considerado um importante romance de nossa literatura. Neste artigo, centro-me no tema das relações interditas, especialmente o incesto. Vou me ater particularmente em comentar as palavras interdição e incesto, esperando, com isso, trazer alguma contribuição a quem já leu ou ainda for ler a obra.

INTERDIÇÃO

Começo pelo lexema interdição. Nele, podemos ver um programa narrativo. Essa palavra tem sua origem no latim ‘interdictio, onis’. Em português, os verbos correspondentes a esse substantivo são interdizer e interditar, o último mais usado. O substantivo latino corresponde ao verbo interdico, is, xi, ctum, cere, derivado de dico, is, xi, ctum, cere, que significa dizer, nomear, afirmar, falar em público. O verbo interdicere em latim era usado com o sentido de fazer um edito, lavrar um decreto (pelo Pretor). Santos Saraiva em seu Dicionário Latino-português faz referência a esse verbo com o sentido de proibir a alguém a água e o fogo, isto é, desterrar alguém. O mesmo dicionário, no verbete interdictio, onis, reitera esse sentido ao afirmar “aquae et ignis interdictio“, isto é, proibir alguém de água e fogo, o que significa desterrá-lo.

A etimologia de interdição leva ao seguinte: um sujeito, que detém um poder, proíbe alguém de fazer algo, sob pena de uma sanção, o desterro, ou seja, o ato de interditar pressupõe um destinador, um dito, um destinatário da ação de dizer e uma sanção. A interdição tem, portanto, caráter performativo, na medida em que se realiza pelo ato de dizer.

Esse exercício de etimologia permite afirmar que a interdição se constitui no e pelo discurso. Dessa forma, pode-se vê-la por quatro aspectos:

a) uma relação comunicativa entre um destinador e um destinatário, em que o destinador, fonte dos valores, comunica ao destinatário a proibição de um fazer (um /dever-não-fazer/);
b) uma relação entre um destinador-julgador e um destinatário-sujeito em que o primeiro sanciona o segundo. No caso de não cumprimento do contrato de injunção, essa sanção será negativa;
c) uma relação de manipulação entre o destinador-manipulador e o destinatário-sujeito, em que o primeiro manipula por intimidação o segundo a um /dever-não-fazer/.

Do ponto de vista psicológico, o interdito afasta de nossa consciência o objeto que ele interdita, controlando a violência.

INCESTO

Como fiz com a palavra interdição, gostaria de traçar alguns comentários sobre a palavra incesto do ponto de vista de sua etimologia. Como aquela, esta também provém do latim, incestus, us, incesto, ação contra a castidade. Ao contrário do que ocorre em português, em latim o processo é lexicalizado por meio do verbo incesto, as, avi, atum, are, cujos sentidos são, manchar, poluir, tornar impuro, corromper, desonrar. Há em latim o substantivo neutro incestum, i (incestus, us é masculino da quarta declinação), cujo sentido é impureza, mancha e o adjetivo incestus, a, um, cujo sentido é impuro, poluído, manchado. O Houaiss registra o adjetivo incesto (datação de 1679) com o sentido de o que não é puro, o que não é casto.

Essa breve pesquisa etimológica permitiu-me chegar ao adjetivo latino castus, a, um (cestus é uma variante de castus). Socorrendo-me mais uma vez de Santos Saraiva, verifiquei que castus, é aquilo que é puro, íntegro, imaculado. Pode-se então apresentar para o substantivo incesto os semas /impuro/ e /manchado/. Puro é o que não contém mistura e manchado é aquilo que contém marcas de sujeira; sujo. Incesto é, pois, uma mistura que deixa marcas de sujeira. Como se pode ver, a palavra em si mesma já expressa a condenação do ato, uma mistura suja.

Chamo a atenção para que, no caso do incesto, a interdição recai sobre a relação entre dois sujeitos que mantêm entre si parentesco próximo. Essa relação é sempre de natureza sexual. O que aproxima esses dois sujeitos é um /querer-fazer/. Portanto, incesto contém os seguintes traços: /humano/, /sexo/, /parentesco/, /interdição/, /condenação/.

A interdição do incesto, uma regra antiquíssima que tem caráter de universalidade, é uma invasão da cultura na natureza, conforme afirma Lévi-Strauss “[…] constitui o passo fundamental graças ao qual, pelo qual, mas sobretudo no qual se realiza a passagem da natureza à cultura” e é a afirmação de um /não-poder-fazer/, ou seja, no domínio das relações entre os sexos, não se pode fazer o que se quer, o que significa que, para a sobrevivência do grupo, o social deve prevalecer sobre o natural; o coletivo, sobre o individual e a organização, sobre o arbitrário. Apoia-se também numa regra de reciprocidade, vale dizer, o sujeito renuncia a ter relação sexual com a filha ou irmã, desde que outro sujeito também faça a mesma renúncia. Portanto, podemos ver na interdição do incesto dois programas transitivos correlatos: um de doação e outro de renúncia.

A interdição do incesto corresponde a uma triagem (lembremo-nos que no lexema incesto está contido o sentido de mistura ruim). Portanto, separa aquilo que pode ser considerada uma boa mistura de uma má mistura. Em síntese: excetuando-se a mistura entre consanguíneos, todas as demais misturas são consideradas boas e, portanto, prescritas.

Falar em interdição me leva a refletir sobre transgressão. Segundo Bataille,  “Não há interdito que não possa ser transgredido“.  A transgressão do prescrito não suprime o prescrito, assim como a transgressão do interdito não o elimina, portanto a prática do incesto não suprime sua interdição.

Aspectualmente, transgredir não é terminativo, mas incoativo, indicando o início da passagem de um estado a outro. Do ponto de vista do destinador, de um estado de pureza para um de impureza. Portanto, o incesto representaria o retorno do sujeito da cultura ao estado de natureza. Nega-se a cultura para afirmar a natureza; nega-se a regra social para se afirmar o instinto. O incesto é, pois, o triunfo pulsão individual sobre a coerção social.


Esse tema foi comentado por mim em palestra do Fórum de Atualização em Pesquisas Semióticas (Faps) do Grupo de Estudos Semióticos da Universidade de São Paulo (GES-USP). O vídeo da palestra está disponível no link abaixo.

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