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Dia desses, um seguidor me mandou a seguinte pergunta: o substantivo vento é concreto ou abstrato? Por trás dessa pergunta simples, esconde-se um problema complexo que há tempos tem incomodado alunos e também professores: a classificação de palavras em concretas e abstratas.
Em primeiro lugar: por que se ensina na escola que há substantivos concretos e abstratos? A resposta imediata é: porque isso aparece no livro didático, na apostilas, na gramática.
Mas por que aparece no livro livro didático e na gramática escolar? Por que esse apresenta a classificação das palavras: artigo, substantivo, adjetivo, verbo, etc. e, quando tratam do substantivo, fazem menção à (sub)classificação dele: primitivo e derivado; simples e composto; próprio e comum; concreto e abstrato. Acrescentam que ainda há os substantivos coletivos.
Por que os livros didáticos e gramáticas apresentam essa (sub)classificação? Simplesmente porque reproduzem o que consta na Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB).
Essa (sub)classificação costuma não apresentar problemas, exceto quando envolve os conceitos de concreto e abstrato. Já vi explicações as mais esdrúxulas possíveis na tentativa de apresentar uma distinção entre substantivo concreto e abstrato. Uma delas dizia que concreto é o que tem existência e abstrato é o que não tem.
Antes de entrar na distinção entre palavra concreta e abstrata, é preciso ter bem claro que a representação da coisa não é coisa. Veja-se o célebre quadro de A traição da imagens, de René Magritte. A representação de algo ou de alguém pela imagem ou pela palavra não é o ser representado. O cachimbo do quadro de Magritte não pode ser fumado. Da mesma forma, a palavra cachorro, que usamos para representar o animal, não é o animal. A palavra cachorro não late nem morde. Arnaldo Antunes, na canção Nome não, diz “Os nomes dos bichos não são os bichos” e “O nome das cores não são as coisas”. Em suma: nos estudos da linguagem, a noção de concreto e abstrato se aplica às palavras e não aos seres. Mais: essa noção não se restringe a substantivos. Há adjetivos concretos e abstratos, há verbos concretos e abstratos, embora as gramáticas restrinjam a noção de concreto e abstrato apenas à classe dos substantivos. Feitas essas observações, podemos tentar fazer a distinção entre concreto e abstrato.
Uma palavra é concreta quando remete a algo existente no mundo natural como árvore, lobo, cordeiro, riacho, bruxa, fada. Quando digo mundo natural, não me refiro apenas ao mundo real, mas também ao mundo construído pela imaginação, por isso se classificam bruxa e fada como palavras concretas.
Palavras concretas servem para representar o mundo. São dotadas de sensorialidade, isto é, são percebidas pelos órgãos do sentido. Remetem a algo que tem cheiro, forma, som, gosto… Aproveitando a pergunta que serviu de mote para este artigo, percebemos o vento pelos sentidos (audição, tato), portanto a resposta está dada.
Uma palavra é abstrata quando não remete a algo do mundo natural. Como o nome indica, trata-se de uma abstração. Não faz referência a algo de ordem sensorial, mas a algo de ordem cognitiva. Esse tipo de palavra faz referência a ideias, a conceitos ou a qualidades ou propriedades dos seres. Nomeiam algo que não tem cheiro, forma, gosto, que não é palpável, que não soa. Por meio das palavras abstratas, organizamos o mundo. Como exemplos, cito as palavras democracia, justiça, solidariedade, amor, morte, violência, ciúme, etc.
Como afirmei, a noção de concreto e abstrato não se restringe à classe dos substantivos. Há adjetivos e verbos concretos como alto, gordo, azedo, áspero, moreno, nadar, correr, caminhar.
Evidentemente pode-se usar o concreto pelo abstrato (e vice-versa), constituindo uma figura de linguagem denominada metonímia, por isso deve-se sempre observar o sentido da palavra e o contexto em que está empregada. Numa frase como A venda do jogador para um clube europeu desagradou os torcedores, a palavra venda é abstrata, denomina o ato de vender, de transferir. Já em Ele comprou os legumes na venda do seu Manoel, venda é uma palavra concreta, denominando o local em que se processa o ato de vender. No primeiro exemplo, poderíamos usar a palavra torcida no lugar de torcedores. Estaríamos, nessa hipótese, empregando o abstrato como concreto.
Por último, mas não menos importante, para que serve afinal saber tudo isso? A distinção entre palavras concretas e abstratas está na base da distinção entre textos temáticos (aqueles em que há dominância de palavras abstratas, os temas) e textos figurativos (aqueles que os temas recebem um revestimento por meio de palavras concretas, as figuras), como tratei neste blogue no post Textos temáticos e figurativos.
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