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A colocação dos pronomes oblíquos átonos, como prescrita pela gramática tradicional, é um dos pontos que mais se afastam dos usos, aí incluída a norma culta. São vários os motivos pelos quais a prescrição gramatical não é seguida. Um deles é que as regras de colocação pronominal tomam por modelo a sintaxe lusitana. Giberto Freyre, em Casa-grande & Senzala, publicado pela primeira vez em 1933, já alertava que a sintaxe da colocação pronominal do português brasileiro apresentava diferenças profundas em relação à sintaxe lusitana. Diz o sociólogo.
Sucedeu, porém que a língua portuguesa nem se entregou de todo à corrupção das senzalas, no sentido de maior espontaneidade de expressão, nem se conservou acalafetada nas salas de aula das casas-grandes sob o olhar duro dos padres-mestres. A nossa língua nacional resulta da interpenetração das duas tendências. Devemo-la tanto às mães Bentas e às tias Rosas como aos padres Gamas e aos padres Pereiras. O português do Brasil, ligando as casas-grandes às senzalas, os escravos aos senhores, as mucamas aos sinhô-moços, enriqueceu-se de uma variedade de antagonismos que falta ao português da Europa. Um exemplo, e dos mais expressivos, que nos ocorre, é o caso dos pronomes. Temos no Brasil dois modos de colocar pronomes, enquanto o português só admite um – o “modo duro e imperativo: diga-me, faça-me, espere-me. Sem desprezarmos o modo português, criamos um novo, inteiramente nosso, caracteristicamente brasileiro: me diga, me faça, me espere. Modo bom, doce, de pedido (FREYRE, 2005).
Oswald de Andrade, no começo do século XX, em um de seus poemas, já chamava a atenção para as diferenças entre a sintaxe lusitana e a brasileira no que tange à colocação pronominal.
Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
(ANDRADE, 1971)
De todas as regras prescritas pela gramática tradicional, a que proíbe que se inicie frase por pronome oblíquo átono e a que estabelece o uso da mesóclise com verbo no futuro do presente e no futuro do pretérito são claramente as menos seguidas pelos falantes, mesmo em situações formais.
Se levarmos em conta que a palavra se caracteriza por uma coesão interna (há uma ordem na sequência dos morfemas), a mesóclise é algo bem estranho à língua já que a colocação de um pronome oblíquo no meio da palavra rompe essa coesão. Isso pode explicar por que a mesóclise praticamente inexiste na língua falada. Na língua escrita, seu uso é também cada vez mais restrito. Não resta dúvida de que a mesóclise está em extinção.
Entre a prescrição da gramática tradicional e um uso culto já consagrado, muita gente ainda fica em dúvida qual norma seguir. Dou a resposta, comentando um caso concreto.
Em artigo do advogado Alberto Zacharias Toron, publicado na Folha de S. Paulo, aparece o seguinte trecho:
“O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, […] resolveu, sozinho, suspender o habeas corpus. O fez contra anterior precedente da 2a. Turma do STF.”
Um seguidor do blogue me mandou mensagem afirmando que o criminalista cometeu um erro gravíssimo ao iniciar a frase por um pronome átono (O fez), pois deveria ter colocado o pronome depois do verbo (ênclise) como prescreve a gramática tradicional.
Parece claro que Toron optou essa construção porque, se colocasse o pronome depois do verbo como querem os prescritivistas, teria de recorrer a uma construção fora de uso há muito tempo (Fê-lo contra anterior precedente da 2a. Turma do STF). Mesmo considerando que o texto seria publicado no primeiro caderno de um jornal de circulação nacional, em que o uso da norma culta é o adequado, a frase soaria bastante estranha ao leitor do jornal.
Quem escreve normalmente se depara com problemas do tipo que Toron encontrou, ficando entre a cruz e a caldeira. Se foge da prescrição, o revisor / editor vai mandar “corrigir”; se fica preso a uma prescrição que está muito distante do uso, deixa o texto com cheiro de naftalina.
O que fazer nesses casos?
Aprendi com uma deusa grega chamada Métis que há uma forma simples de resolver esse tipo de problema, pois a língua apresenta formas diferentes de se dizer uma mesma coisa. Basta mexer no texto.
No caso do texto de Toron, bastaria trocar o pronome pessoal O pelo pronome demonstrativo ISSO para retomar o segmento anterior “suspender o habeas corpus”:
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, […] resolveu, sozinho, suspender o habeas corpus. Fez isso contra anterior precedente da 2a. Turma do STF.
Pronto! O revisor/editor não vai lhe devolver o texto, nem o que você escreveu vai ficar com cheiro de naftalina.
Referências
ANDRADE, Oswald. Poesias reunidas. 5a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 50a ed. São Paulo: Global, 2005.