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Em posts anteriores, discorri sobre coerência e coesão. Algumas pessoas me mandaram mensagens solicitando que eu explicitasse os conceitos em um texto. É o que faço neste artigo.
O texto que será de base para exemplificar aspectos teóricos faz parte do livro Ascensão e queda de Adão e Eva, de Stephen Greenblat, publicado pela Companhia das letras, que reproduzo a seguir.
A humanidade não pode viver sem histórias. Nós nos cercamos delas, as criamos ao dormir, as contamos a nossos filhos e pagamos outras pessoas para que as contem. Há quem as inventem para ganhar a vida. E outras pessoas (e eu sou uma delas) passam toda a idade adulta procurando entender sua beleza, seu poder e sua influência.
Este livro é a história de um dos contos mais extraordinários já criados. Deus criou Adão e Eva, o primeiro homem e a primeira mulher, e os pôs, nus e livres de vergonha, num jardim de delícias. Disse-lhes que poderiam comer o fruto de qualquer uma de suas árvores, com uma única exceção. Não poderiam comer da árvore da consciência do bem e do mal; no dia em que violassem essa única proibição, morreriam. Uma serpente, o mais ardiloso dos animais do campo, pôs-se a conversar com a mulher. Falou-lhe que desobedecer à ordem divina não os levaria à morte, mas que lhes abriria os olhos e os tornaria semelhantes aos deuses, conhecedores do bem e do mal. Acreditando na serpente, Eva comeu o fruto proibido. Ofereceu-o a Adão, que também o comeu. Os olhos deles realmente se abriram: ao se darem conta de que estavam nus, juntaram folhas de figueira para se cobrir. O Senhor os chamou e perguntou-lhes o que tinham feito. Diante da confissão, Deus anunciou várias punições: daí em diante, as serpentes rastejariam sobre o ventre e comeriam o pó; as mulheres teriam filhos com dor e desejariam os homens, que as dominariam; os homens seriam obrigados a ganhar seu sustento com suor e fadiga, até que retornassem à terra de que tinham sido feitos. “Pois és pó, e ao pós tornarás.” Para impedir que eles comessem o fruto de outra das árvores especiais – a Árvore da Vida – e vivessem eternamente, Deus expulsou-os do jardim e pôs de sentinela querubins armados, para evitar que voltassem.
Narrada no começo do Gênesis, a história de Adão e Eva vem moldando há séculos as concepções das origens e do destino do homem. Considerando o jeito que as coisas são, seria muito improvável que essa história viesse a adquirir tanto destaque. É um conto que poderia cativar a imaginação de uma criança impressionável, como eu era, mas qualquer adulto, no passado ou no presente, poderia ver facilmente as marcas da imaginação humana no que tem de mais desvairado. Um jardim mágico; um homem e uma mulher, nus, que são criados de uma forma que nunca outros seres humanos vieram ao mundo; adultos que sabem falar e agir sem a infância prolongada que é a marca por excelência de nossa espécie; uma advertência misteriosa sobre morte que nenhum ser recém-criado, como aqueles, teria como compreender; uma serpente falante; uma árvore que concede o conhecimento do bem e do mal; outra que concede vida eterna; e guardiões sobrenaturais que brandem espadas flamejantes. Isso é ficção da mais inventiva, uma história que lança mão do mais desatinado faz de conta.
Entretanto, milhões de pessoas, inclusive alguns dos espíritos mais inteligentes e brilhantes de que temos notícia, aceitam a narrativa bíblica de Adão e Eva como uma verdade sem retoques. E, não obstante a enorme massa de dados acumulada por ciências como a geologia, a paleontologia, a antropologia e a biologia evolutiva, um número incalculável de contemporâneos nossos continua a aceitar esse conto como uma narrativa historicamente precisa da origem do universo e a se ver, literalmente, como descendentes desses primeiros seres humanos que habitaram o Jardim do Éden. Na história do mundo, poucas narrativas se mostraram tão difundidas e foram aceitas como reais com tamanha persistência. (GREENBLATT, Stephen. Ascensão e queda de Adão e Eva. São Paulo: Companhia das letras, 2018, p. 10-11).
O que você acabou de ler faz parte do prólogo do livro do historiador norte-americano. Com certeza você deu ao texto um sentido, ou seja, considerou-o coerente. Isso decorre porque há continuidade de sentidos, as ideias estão amarradas umas às outras por mecanismos de coesão. Por outro lado, o texto apresenta informatividade, pois mantém um equilíbrio entre informações conhecidas e informações novas.
Há ainda intertextualidade, pois o texto retoma a narrativa bíblica de Adão e Eva, presente no Gênesis. Enfim, trata-se de um texto inteligível e bem formado, em que os mecanismos de coesão textual exercem um fator muito importante para assegurar a coerência.
No primeiro parágrafo, é apresentado o tema das histórias sobre o qual o autor tem uma posição clara: a humanidade não pode viver sem histórias. O item lexical histórias é retomado diversas vezes nesse parágrafo por meio de um mecanismo coesivo que consiste na substituição do item lexical história por pronomes em função anafórica. Veja:
A humanidade não pode viver sem histórias. Nós nos cercamos delas, as criamos ao dormir, as contamos a nossos filhos e pagamos outras pessoas para que as contem. Há quem as inventem para ganhar a vida.
Veja ainda que os pronomes possessivos sua e seu também retomam o termo histórias:
E outras pessoas (e eu sou uma delas) passam toda a idade adulta procurando entender sua beleza (= a beleza das histórias), seu poder (= o poder das histórias) e sua influência (= a influência das histórias).
Veja que, nesse parágrafo, o autor conseguiu manter o foco no tema histórias. O texto avança; mas, ao mesmo tempo, retoma o que ficou para trás.
Avancemos. No primeiro parágrafo, o autor fala de histórias em sentido amplo (não é à toa que a palavra aparece no plural). A partir do segundo, que se liga por sentido ao primeiro, ele tratará de uma história em particular. Ele não falará mais de histórias, mas de uma história específica, a história, já contada e conhecida dos leitores: a de Adão e Eva.
A introdução desse novo tema se dá por uma relação intertextual (trata-se de texto bíblico) que o autor parafraseia, isto é, conta com suas próprias palavras, para o caso de haver leitores que, porventura, não a conheçam (que devem se bem poucos) e, no caso dos leitores que já a conheçam (a maioria) trazê-la de volta à memória.
A narrativa bíblica de Adão e Eva será o tema dos dois parágrafos que seguem. Esse tema será mantido em foco pela recorrência a ele por meio de mecanismos coesivos que asseguram a continuidade do texto. Veja os itens lexicais usados pelo autor para referir-se à narrativa de Adão e Eva:
“um dos contos mais extraordinários já criados”
“a história de Adão e Eva”
“essa história”
“um conto”
“ficção da mais inventiva”
“uma história que lança mão do mais desatinado faz de conta”
À medida em que a narrativa bíblica de Adão e Eva vai sendo retomada, ela é ressignificada, atribuindo-se a ela um valor. Se você atentar bem ao sentido das expressões usadas para retomá-la (história, conto, ficção, faz de conta) verá que ela é recategorizada. Aquilo que, em princípio, é uma narrativa bíblica, é apresentado como um conto de ficção, uma história de faz de conta. Em outros termos: o autor desmistifica a história de Adão e Eva, mostrando ao leitor que ela não é real.
O último parágrafo se inicia por um conector: entretanto, que estabelece relação de oposição ao que foi apresentado anteriormente. Os conectores são mecanismos que garantem a coesão sequencial do texto.
Ao introduzir o último parágrafo pelo conector entretanto, o autor orienta o leitor para um argumento que irá de encontro ao que afirmou anteriormente, ou seja, embora, como ele demonstrou, a história de Adão e Eva seja uma narrativa ficcional, o que é confirmado pela ciência moderna (geologia, paleontologia, antropologia, biologia), um número muito grande pessoas continuam aceitando a narrativa de Adão e Eva como uma história verdadeira da origem do ser universo e do ser humano.
Os assuntos coerência e coesão (e outros) são tratados em nosso último livro: Práticas de leitura e escrita (Editora Saraiva). Mais informações no link abaixo.