Coerência

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Já comentei aqui que alguns autores não fazem distinção entre coesão e coerência, outros entendem que são coisas diferentes. Filio-me aos que entendem serem fatores de textualidade distintos; pois, enquanto a primeira diz respeito ao plano da expressão, portanto é de natureza linguística, a segunda relaciona ao plano do conteúdo, a aspectos que dizem respeito aos sentidos do texto. Evidentemente, são fatores de textualidade que se imbricam.

Por ser relativa ao plano do conteúdo, os fatores responsáveis pela coerência do texto não são apenas de natureza linguística, pois o sentido dos textos depende também do contexto enunciativo e de fatores pragmáticos, isto é, das intenções dos usuários no processo comunicativo.

A coerência está ligada à inteligibilidade do texto, ou seja, um texto é coerente quando faz sentido para o leitor ou o ouvinte, e resulta da continuidade de sentidos. Você pode estar se perguntando: como manter a continuidade dos sentidos para assegurar a coerência?

O primeiro fator que assegura a continuidade dos sentidos é a reiteração de temas. Introduzido um tema, ele é retomado na cadeia do discurso, mantendo-o sempre em foco, ou seja, num texto há avanços e recuos. São introduzidas informações novas, o que permite a progressividade do texto, mas também há a retomada de informações já dadas.

Como os temas podem vir revestidos por figuras, a recorrência de figuras é também fator de coerência. A reiteração de temas e a recorrência de figuras no texto formam cadeias que garantem a continuidade do texto dando-lhe unidade de sentido e inteligibilidade, ou seja, coerência.

Vamos dar um exemplo que você certamente conhece, o poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, aquele que começa com “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá”. Certamente, você já leu esse poema e considerou que ele tem sentido, ou seja, você considerou coerente o poema. De onde vem a coerência dele? Da manutenção de temas como natureza e nacionalismo, que são reiterados ao longo do poema. Mais ainda: esses temas vêm recobertos por figuras e a recorrência delas também garante a continuidade do sentido. Veja a propósito a recorrência a figuras que remetem ao tema da natureza: palmeiras, sabiá, aves, gorjeia, flores, céu, estrelas.

O outro fator que assegura a continuidade de sentidos é a relação lógica e não contraditória que se estabelece entre sequências menores de texto, por exemplo, entre uma oração e outra. Suponha que você esteja lendo um texto e numa determinado momento se depara com o período abaixo:

            Marco estava muito bem de saúde apesar de ter uma alimentação equilibrada, praticar atividades físicas regularmente sob orientação médica, não fumar e não ingerir bebidas alcoólicas.

No trecho há descontinuidade de sentido, pois o que se afirma na segunda oração não guarda relação lógica, no caso de oposição, com a primeira. Como se pode observar, nesse caso, a ausência de coerência está relacionada à quebra de coesão, decorrente do mau emprego do conector apesar de. A relação entre as duas orações é implicativa, isto é, de causa e consequência, e não concessiva, isto é, de oposição.

Como o nexo que liga as duas orações é o de causa (ter alimentação equilibrada, praticar atividades físicas regularmente sob orientação médica, não fumar e não ingerir bebidas alcoólica) e consequência (estar muito bem de saúde), para manter essa relação de sentido, o conector adequado deveria ser porque ou equivalente (visto que, já que, uma vez etc.). Observe:

Marco estava muito bem de saúde porque (visto que, já que, uma vez que) tinha uma alimentação equilibrada, praticava atividades físicas regularmente sob orientação médica, não fumava e não ingeria bebidas alcoólicas.

O linguista Michel Charolles, num livro denominado Introdução aos problemas da coerência dos textos, apresenta quatro regras que garantem a coerência textual. A seguir, apresentamos essas regras de maneira bastante objetiva.

Regra número 1: Regra da repetição
Faça retomada de itens já apresentados no texto.

Lembre-se de que o texto se dispõe linearmente, uma palavra após a outra; mas, como assinalamos, é necessário que se façam retomadas do que já foi dito. Essas retomadas normalmente são feitas pelo mecanismo da coesão por substituição, por meio de anafóricos como sinônimos, hiperônimos e termos genéricos.

Regra número 2: Regra da progressão
Ao mesmo tempo que são feitas retomadas, é necessário que o texto avance, que progrida.

Isso ocorre pela apresentação de itens lexicais novos. Veja que, na elaboração de um texto, há um constante vai e vem: recuperam-se informações já apresentadas (Regra 1) e renovam-se informações (Regra 2). Os procedimentos mais comuns para se renovar informações já apresentadas são as exemplificações, normalmente introduzidas por expressões como a saber, isto é, por exemplo e a paráfrase, que consiste dizer a mesma coisa por outras palavras. As expressões mais comuns para introduzir paráfrases são: em outras palavras, em outros termos, melhor dizendo etc.

Regra número 3: Regra da não contradição
Novos itens adicionados ao texto não podem estar em contradição com o que foi posto ou pressuposto anteriormente.

Veja este exemplo citado pela professora Maria Tereza Fraga Rocco em seu livro Crise na linguagem: a redação no vestibular:

Eu não ganhei nenhum presente, só ganhei uma folha em branco, meu retrato de pôster e um disco dos Beatles.

Há uma informação posta em primeiro lugar em que se afirma “eu não ganhei nenhum presente”, no entanto as informações que sucedem contradizem o que foi exposto anteriormente, pois o enunciador afirma que ganhou uma folha em branco, o retrato de pôster e um disco dos Beatles. Essa contradição torna o enunciado sem sentido, ou seja, incoerente.

Regra número 4: Regra da relação
É necessário que todos os elementos do texto guardem relação entre si.

Essa regra, de certa forma, subsume todas as outras, pois, se coerência é continuidade de sentidos, não pode haver contradição com o que já foi posto ou ficou pressuposto. O texto se configura como um todo em que as partes (palavras, orações, períodos) relacionam-se semanticamente, isto é, deve haver entre elas associação de sentido. Em síntese: a regra da relação faz referência ao fato de que nos textos nada deve estar solto, pois as partes que compõem o todo (o texto) devem ser solidárias entre si.

Por fim, afirmamos que a coerência é uma propriedade dos textos em geral, independentemente do gênero, ou do tipo (descritivo, narrativo, argumentativo, expositivo, conversacional). Por outro lado, como dissemos, a coerência não diz respeito apenas a aspectos linguísticos, envolvendo também aspectos contextuais e pragmáticos, de sorte que está ligada aos usuários. Um texto que, para um leitor, é coerente pode não sê-lo para outro, pois o sentido não está no texto. Na verdade, os sentidos são construídos pelo leitor / ouvinte com base nas informações presentes no texto. Lembrando ainda que nem sempre o sentido construído pelo leitor ou pelo ouvinte é aquele que o autor pretendeu. Estão aí os mal-entendidos para provar isso.   

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Este é nosso último post de 2019, o blogue sai em férias e retorna em 2020. Desejamos a todos um feliz Natal e um Ano Novo de muita harmonia. Até janeiro.

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