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Neste artigo, falo de Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo, lançado em 2018 no Brasil pela Editora Todavia, em edição muito bem cuidada, que respeitou a grafia usada na edição original. A lamentar apenas o longo tempo que nós, brasileiros, ficamos sem poder adquirir a obra com facilidade. Isso porque o livro foi publicado em Portugal em 2009 e só 9 anos após seu lançamento chegou às livrarias brasileiras. Antes, só indo a Portugal, ou sofrer com a demora dos nossos correios em entregar qualquer coisa que venha de fora.
A edição traz dois prefácios, um do filósofo português, nascido em Moçambique, José Gil, e outro da escritora Moçambicana Paulina Chiziane, conhecida dos brasileiros, sobretudo pelo seu excelente romance Nicktche, uma história de poligamia, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. A edição traz ainda um posfácio da própria autora.
O romance teve enorme repercussão na Europa. No Brasil, a professora emérita da USP, Leila Perrone-Moisés, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, de 28 de julho, afirma que o romance de Isabela Figueiredo “é um livro notável, e como tal reconhecido e premiado. Já era mais do que tempo de ser editado no Brasil. É um livro que se começa a ler e não se consegue largar, por tudo o que nos oferece”.
Isabela Figueiredo nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, Moçambique, em 1963 e se muda para Portugal em 1975, por imposição do pai, em decorrência da situação política que vivia Moçambique (Guerra Civil, Independência). As memórias de Isabela Figueiredo centram-se no período em que viveu em Moçambique. São poucos anos, doze apenas, mas o que ela resgata desse período atinge o leitor na carne. Se, de um lado, há a descoberta do corpo, da sexualidade; do outro, há a consciência do racismo, da humilhação do outro por causa da cor de sua pele, da exploração do outro como trabalho quase escravo, da exploração sexual da mulher negra, boa para se trepar por causa do tamanho da cona. Mas essa consciência dói mais que o normal, pois todo esse comportamento racista é observado no próprio pai. Como amar uma pai que lhe quer tanto, se esse pai é o pior dos racistas? Como amar um pai que usava as pretas apenas para foder com elas porque fodiam melhor que as brancas? É muito conflito para pouca idade.
O preconceito que os colonos brancos têm em relação aos pretos vai muito além da discriminação em razão da cor da pele. Tudo no preto e nas pretas é alvo de preconceito. Essas últimas são equiparadas a cadelas e não prestam para nada, a menos para foder porque têm conas grandes. A língua dos pretos também não presta. Um primo da narradora, nascido em Moçambique, nunca pronunciou as três sílabas da capital de Moçambique, MA-PU-TO, embora pronunciasse com facilidade as cinco sílabas de LOU-REN-ÇO-MAR-QUES, pois “Maputo era nome de preto. “Um preto, uma zona selvagem, um rio podiam chamar-se Maputo, Icomati, Limpopo, Zambeze. Uma vila podia chamar-se Marracuene, Inhaca, Infulene, Xipamanine. Uma cidade de brancos, não. Tinha de ser Lourenço Marques, Beira, Vila Luísa. Mocímboa da Praia”.
Em Portugal, morando em Caldas da Rainha, a menina, que frequenta a escola secundária, descobre o machismo dos portugueses brancos. Tinha apenas treze anos e era insultada por “evidenciar mamas, cona e rabo”. Insultavam-na por ser mulher. Ao reclamar do comportamento dos homens para avó, com quem morava, ouve dela que era assim mesmo, que não devia responder porque “mulheres honradas tinham orelhas moucas”.
Não se trata de um romance de amor e ódio, mas um romance que constata que, como diz a autora, há inocentes-inocentes e inocentes-culpados e que “há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas-culpadas. Entre as vítimas há carrascos”.
Isabela Figueiredo sabe narrar sem ódio, o que ela narra é uma fratura na sua vida, mas, como ela mesma diz no posfácio, “A minha vida tem uma crueza doce. Sou uma mole. Não me façam perguntas. Leiam-me apenas”.
Fica, portanto, o convite. Leiam Caderno de memórias coloniais.