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Este blogue é um espaço para falar de língua e literatura. Já vi muita gente defendendo que letra de música não é literatura. Não caberia no espaço deste artigo discutir o que é literatura e o que faz um texto ser alçado à categoria do literário. Em meu livro Leitura do texto literário, publicado pela Editora Contexto, discuto esse assunto com profundidade.
Quando penso na letra de Construção, de Chico Buarque, só para citar um único exemplo, não consigo entender por que certas pessoas não a consideram manifestação de arte literária. Será por que é acompanhada de música? Mas música e poesia sempre andaram de mãos dadas. O gênero poético mais cultivado é a poesia lírica. Por que essa forma literária se chama lírica? Porque era acompanhada por instrumento de cordas chamado lira.
Aproxima-se o Natal e vejo ruas e lojas enfeitadas com luzinhas coloridas. Nos shoppings e ruas de comércio, pessoas caminham ao som do Jingle Bell. Todo ano é igual, o que me obriga ser excessivo, repetindo o que já disse em outra oportunidade.
Não gosto do Jingle Bell. Desde pequeno, associo essa canção natalina a deboche. Nós, crianças, cantávamos uma paródia: “Jingou béu jingou béu / Acabô o papéu / Não faiz mau não faiz mau / Limpa com jornau / O jornal tá caro / Tá cara pra chuchu”. Desnecessário dizer o que vinha depois.
Para mim, a música que mais diz sobre o Natal é Boas Festas, do compositor baiano Assis Valente (1911 – 1958). Nunca ouço tocar nos shoppings, talvez por isso anda bastante esquecida. Os mais velhos, no entanto, devem se lembrar da letra, que é bastante triste, e começa assim:
“Anoiteceu / O sino gemeu / E a gente ficou / Feliz a rezar / Papai Noel, / Vê se você tem / A felicidade / Pra você me dar”.
Assis Valente teve uma vida sofrida demais. Menino pobre do interior da Bahia, ainda criança, foi levado da casa dos pais e entregue a uma família para a qual trabalhava duro. Aos 16 anos, foi tentar a sorte e mudou-se para o Rio de Janeiro.
Assis Valente era negro e homossexual e sofreu muito com o duplo preconceito na então capital da República. Trabalhava como protético e compunha muito. Embora muitas canções dele tenham sido gravadas e feito muito sucesso na voz de artistas famosos, Assis Valente vivia atolado em dívidas, o que o obrigava a vender suas composições.
Artistas famosos que fizeram muito sucesso gravando suas músicas foram bastante ingratos com ele. Carmen Miranda, a pequena notável, como se dizia, chegou a humilhá-lo. Recusou-se a gravar Brasil pandeiro (“Chegou a hora / Dessa gente bronzeada mostrar seu valor”), dizendo que Assis Valente tinha ficado borocoxô. Azar o dela não ter gravado uma das mais belas canções brasileiras de todos os tempos. Como é bom ouvir “Brasil, esquentai vossos pandeiros / Iluminai os terreiros / Que nós queremos sambar”.
Assis Valente, humilhado e envergonhado, foi se afastando cada vez mais das pessoas. Tentou o suicídio várias vezes. Cortou os pulsos, pulou do Corcovado. Não morreu porque ficou pendurado numa árvore. No dia 10 de março 1958, nove dias antes de completar 47 anos, finalmente conseguiu. Tomou formicida com guaraná.
Assis Valente, além de lindíssimas composições, deixou muitas dívidas e uma carta em que pedia que comprassem seu último disco, ‘Lamento’. Pedia ainda que Ary Barroso pagasse os aluguéis que devia. Não queria deixar seus credores a ver navios. No final da carta de despedida, Assis Valente diz: “Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos, e de tudo”.
Boas Festas é uma canção que diz do Natal dos pobres, daqueles que não ganham presentes, daqueles que não têm ceia, daqueles a quem o “bom velhinho” há muito tempo abandonou. Num trecho, a letra de ‘Boas Festas’ diz:
“Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem / Com certeza já morreu / Ou então felicidade / É brinquedo que não tem”.
O Natal já está bastante perto. Como ter alegria ouvindo o Jingle Bell, se o que se vê é muita gente ainda passando fome?
Em Boas Festas, Assis Valente diz que nem todos são filhos de Papai Noel (“Eu pensei que todo mundo / Fosse filho de Papai Noel”).
Em vez de comemorar com o Jingle Bell, prefiro fazer coro com Assis Valente e cantar:
“Papai Noel, / vê se você tem / A felicidade / pra você me dar”.
Boas festas a todos.