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Javier Marías (1951 – 2022) é um dos autores de língua castelhana mais lidos no mundo. Seus livros estão traduzidos para diversas línguas. É autor de obras de grande sucesso, como Os enamoramentos, Coração Branco, Seu rosto amanhã, O homem sentimental, todas publicadas no Brasil pela Companhia das Letras. Neste post, faço um breve comentário sobre seu romance Berta Isla, publicado pela Companhia da Letras, com tradução de Eduardo Brandão.
Berta Isla é um daqueles romances que prendem o leitor desde as primeiras páginas. Começada a leitura, é difícil parar. Para se ter uma ideia, li as 543 páginas em dois dias. O livro do escritor espanhol, no entanto, é muito mais do que uma história envolvente. Como é comum na obra do espanhol, seu livro é cheio de referências a outras obras, literárias ou não.
Em Berta Isla há referências explícitas a Little Gidding, de T.S. Eliot, Henrique V, de Shakespeare, O coronel Chabert, de Balzac, O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis. Berta Isla tem também muitos pontos de contato e referências a romances de espionagem. Numa das cenas, uma personagem é posta em cena lendo o O agente secreto, de Joseph Conrad.
Muito resumidamente e sem spoilers, o romance conta que Berta, uma espanhola, casa-se com Tomás Nevinson, seu colega de escola, de dupla nacionalidade, espanhola e inglesa, que tem enorme facilidade para falar diversas línguas, reproduzindo com perfeição o sotaque de falantes nativos de línguas estrangeiras. Tomás está estudando na Inglaterra quando se vê envolvido num crime de homicídio. Procurando ajuda para não ser acusado de um crime que não cometeu, pede orientação a seu tutor na Universidade de Oxford. O tutor lhe faz a indicação de uma pessoa que poderia ajudá-lo. Essa pessoa não só ajuda Tomás como o seduz a entrar para o serviço de inteligência inglês onde passa a trabalhar como agente secreto. Por causa desse trabalho, Tomás acaba se afastando da família, até desaparecer completamente. Os anos vão passando e Berta não tem nenhuma notícia do marido, no entanto alimenta a esperança de que Tomás esteja vivo e que uma hora retornará.
O tema do “morto” que reaparece remete a obras como O coronel Chabert, de Balzac, que também aparece em outra obra de Marías, Os enamoramentos, e O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, uma obra clássica de micro-história. Trata-se de um acontecimento ocorrido no século XVI, que se tornou um caso judicial de enorme repercussão. Martin Guerre abandona a mulher e filho pequeno e “retorna” muito tempo depois. A mulher não reconhece o reaparecido como seu marido. Trata-se de um impostor e o caso a levado a julgamento. Esse acontecimento foi levado para as telas num filme de 1982, também chamado O retorno de Martin Guerre, dirigido por Daniel Vigne, com Gérard Depardieu. Mas volto a Javier Marías.
As obras do espanhol têm essa característica. Nós as lemos como um hipertexto, pois Javier Marías sempre vai deixando no fio da história links que levam o leitor a outros textos, literários ou não. Aprende-se muito com ele, dada a riqueza que referências que sua obra traz.
Marías escreve muito bem, sua linguagem é cheia de sutilezas, de ironias, de comparações excepcionais. Vejam como exemplo a comparação que ele faz de um agente secreto com o narrador de terceira pessoa.
“Somos como o narrador em terceira pessoa de um romance […], é ele que decide e conta, mas não é possível interpelá-lo ou questioná-lo. Não tem nome nem é um personagem, ao contrário do que relata na primeira pessoa; portanto, damos crédito a ele e dele não desconfiamos; não sabemos por que sabe o que sabe e por que omite o que omite e cala o que cala e por que está capacitado para determinar o destino de todas as duas criaturas, e mesmo assim não pomos em dúvida o que diz. É óbvio que está, mas ao mesmo tempo não existe, ou ao contrário, é óbvio que existe, mas ao mesmo tempo é incontrolável. Estou falando do narrador, atenção, e não do autor, que está em casa e não responde pelo que seu narrador diz; nem sequer pode explicar por que este sabe tudo quanto sabe. Dito de outra maneira, o narrador na terceira pessoa, onisciente, é uma convenção que aceitamos, e quem abre um romance não costuma se perguntar por que nem para que toma a palavra e não a larga durante centenas de páginas, essa voz de homem invisível, essa voz autônoma e externa que não vem de lugar nenhum”.
Para quem ainda não leu Javier Marías, Berta Isla é excelente porta de entrada.