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No post, apresento alguns comentários sobre o livro Anatomia de um julgamento: Ifigênia em Forest Hills, de Janet Malcolm, cuja leitura recomendo. No Brasil, o livro foi publicado pela Companhia das Letras, com tradução de Pedro Maia Soares. O livro de Malcolm pode ser enquadrado num gênero que pode ser denominado de jornalismo literário. Para quem gosta de narrativas de crimes, o gênero é um prato cheio.
Minha predileção por esse gênero começou há muitos anos com a leitura do excepcional A sangue frio, de Truman Capote, publicado também pela Companhia das Letras, numa tradução de Sergio Flaksman, com apresentação de Ivan Lessa e posfácio de Matinas Suzuki Jr.
Janet Malcolm nasceu em Praga em 1934 e aos cinco anos mudou-se com a família para os Estados Unidos. Escreve para a revista New Yorker. Além de reportagens, algumas publicadas em livros, Malcolm também escreveu biografias. Entre suas obras, cito apenas aquelas traduzidas para o português: O jornalista e o assassino, sua obra mais festejada; A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia; 41 inícios falsos: Ensaios sobre artistas e escritores; Lendo Tchekhov: uma viagem à vida do autor.
A matéria que deu origem a Anatomia de um julgamento é o processo que foi movido contra Mazoltuv (Marina) Borukhov, uma médica de 35 anos, acusada de ser a mandante do assassinato do marido, Daniel Malakov, de quem se separara judicialmente. Na processo de separação, a guarda da única filha do casal, Michele, de 4 anos, ficou com o pai (a decisão que concedeu a guarda ao marido decorre de um processo permeado de dúvidas e contradições). Inconformada com a perda da guarda da filha, Mazoltuv teria contratado Mikhail Mallayev, para assassinar o ex-marido quando este estava num parque parque público, em Forest Hills, no Queens (NY). Borukhova e Malakov foram levados a julgamento em 2009 pelo Tribunal do Júri.
Malcolm acompanha presencialmente o desenrolar do processo, cujo final não relato para dar não dar spoiler. O que faz de Anatomia de um crime um grande livro não é o relato da batalha jurídica, mas as questões que Malcolm levanta sobre como funciona a corte e seus agentes, juiz, promotores, advogados, júri, testemunhas e como a atuação desses agentes constroem narrativas que levarão à absolvição ou à condenação dos réus. No caso do julgamento de Borukhova a imagem que se constrói da acusada pelos acusadores e pela imprensa será determinante para a decisão do júri. O livro é muito bom para se entender como se produz o discurso discurso e como os réus são condenados ou absolvidos pelo discurso que se constrói sobre eles.
O texto de Malcolm está na fronteira entre reportagem jornalística e literatura. O fato narrado não é ficcional, mas o tratamento dado a ele é literário a começar pela forma como os atores são descritos. O advogado de Borukhova, Stephen Scaring, é apresentado como se fosse uma personagem do escritor polonês Isaac Bashevis Singer, autor que já comentei neste blogue.
A descrição de Borukhova, uma mulher bonita e enigmática nascida no Uzbequistão, na antiga URSS, formada em medicina aos 22 anos, que imigrou para os Estados Unidos em 1997, leva o leitor a ter dúvidas se ela de fato seria a mandante do assassinato do ex-marido. Borukhova é apresentada como uma mulher fechada em seu grupo, os judeus da seita bucarana. Ele se veste de forma diferente e é de poucas palavras.
As referências a textos da esfera literária estão esparramadas ao longo do livro, mas Malcolm não as coloca em seu texto para manifestar erudição, mas para ajudar o leitor a formar um retrato preciso dos agentes envolvidos no crime, no julgamento e no contexto que envolve o assassinato.
Uma carta que Borukhova se extravia. Malcolm associa esse episódio a fato semelhante que aparece no romance Tess dos D’Urbervilles, de Thomas Hardy. O comportamento contido de Borukhova é comparado ao de Cordélia, da peça Rei Lear, de Shakespeare. Khaika Malakov, pai do ex-marido de Borukhova, diz a Malcolm que, nos Estados Unidos, as penas para homicídios, ao contrário da Rússia, são brandas, ao que esta, contrapondo, diz a ele que, em Crime e castigo, Raskholnikov ganhou apenas oito anos na Sibéria. Quando Malcolm vai visitar os parentes do ex-marido assassinado, constata que eles
“estão sempre comendo (ou oferecendo) frutas em momentos significativos (Gurov, em A dama e o cachorrinho, come uma fatia de melancia depois que ele e Anna dormiram juntos pela primeira vez; Oblonski, em Anna Kariênina, está trazendo uma pera grande para Dolly quando ela confessa a infidelidade dele). Está no sangue da narrativa russa chamar a atenção para as frutas”.
Todas essas referências literárias estão antecipadas a partir do subtítulo do livro”Ifigênia em Forest Hills”, que remete à tragédia em Agamemnon sacrifica sua filha Ifigênia.
Para completar, há no final do livro a reprodução de uma excelente entrevista que Janet Malcolm concedeu à jornalista Katie Roiphe. Nessa entrevista, Malcolm revela alguns “segredos” de seu trabalho com a escrita.