A terceira margem do rio

Tempo de leitura: 4 minutos

No artigo trato de um dos contos mais festejados da literatura brasileira: A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, que faz parte do livro Primeiras estórias.

Trata-se de um conto narrado em primeira pessoa, o que produz um efeito de sentido de subjetividade. O que é transmitido ao leitor é a visão do narrador, que é personagem do narrado. Narrador e demais personagens não são designados por nomes próprios, mas pelos papéis temáticos que exercem: o filho, o pai, a mãe, a irmã e o irmão.

A narrativa se desenvolve a partir de uma ruptura, que provoca o insólito. O pai, homem cumpridor e ordeiro, manda que lhe fabriquem uma canoa. Sem falar nada, embarca nela e lança-se ao rio para nunca mais voltar. Permanece na imensidão do rio, indo acima e abaixo.

A família começa a pensar que ele endoidara; outros levantavam a hipótese de pagamento de promessa, aventam ainda a possibilidade de doença contagiosa. O certo é que ele permanecia no rio.

A família deixa mantimentos na margem e ele os apanha quando percebe que ninguém está vendo. O tempo vai passando, a filha casa-se e vai embora. Quando teve filho, trouxe-o para mostrar ao pai. O irmão vai embora para outra cidade; a mãe, por fim, também se muda. Só o filho narrador é quem fica e tenta ainda alguma comunicação com o pai por meio de gestos.

O tempo passa, o filho já está de cabelos brancos, quando acha que é hora de trocar de lugar com o pai. Vai para a margem do rio e grita, dizendo que ele já estava velho e que já cumprira o seu tanto e pede ao pai que abandone a canoa, pois tomaria seu lugar.

Para sua surpresa, o pai fica em pé na canoa e maneja os remos vindo em direção à margem. Era a primeira comunicação que travaram nesses anos todos. O filho, no entanto, com medo, foge. Termina sua narrativa, reconhecendo sua falta e pedindo perdão e que, quando morrer, o ponham numa canoinha e o lancem ao rio.

Na leitura do conto, a única voz que nos fala é a do filho. Não sabemos, assim como ele, os motivos de o pai ter se lançado ao rio. É a partir do ponto de vista do narrador que vamos construir o sentido do texto. Além do narrador, temos um tempo, que se desdobra em um tempo dos acontecimentos (passado) e um tempo de duração dos acontecimentos, que não é preciso, mas que sabemos que é de muitos anos, pois o filho fica com cabelos brancos e o pai se torna um velho.

Além do tempo, há um espaço, que é o da enunciação, o aqui. Esse espaço tem um papel relevante no conto: o rio. É até mencionado no título. É o espaço em que o pai se isola, é o espaço para o qual o filho quer ir quando morrer. É um espaço imenso que, em momentos do conto, o filho diz não ver a outra margem. É um espaço que se confunde com o tempo. As águas correm e não voltam, como o tempo que flui. É o rio que tudo carrega. Esse espaço aberto (rio) está em oposição a um espaço fechado (a casa). O movimento do pai é ir do fechado para o aberto. O espaço ocupado pelo filho passa a ser a margem do rio, ele não se protege mais na casa, mas tem medo de lançar-se ao rio.

É nesse limite em que ele vive: sem a proteção da casa e sem a liberdade do rio. É o espaço da ausência de comunicação. É nesse espaço que ele, em seu discurso, expõe o sentimento de culpa que carrega. A leitura desse conto me deixa derrubado, porque me faz ver que vivo na terceira margem do rio, como o filho, alguém que sabe que tem algo a fazer, mas que o medo impede de fazê-lo e por isso sofre. Como o filho, vivo no espaço da mudez.

Num dos enunciados finais do conto, o narrador fala, não mais por ele, mas por mim: “Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo”.

5 Comentários


  1. Obrigado Ernani por ajudar a entrar em contato com mais esta preciosidade.

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  2. Que textos maravilhosos – o do Guimarães e o seu!
    O que é mais tocante, para mim, é saber que na literatura cabem todos os nossos sentimentos, toda nossa humanidade. Cada um pode se encontrar dentro de sua força e fragilidade. Muito lindo, Ernani.

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  3. Clareza e simplicidade, ingredientes básicos para uma reflexão prazerosa e eficaz. Obrigada por mais essa contribuição à expansão da cultura.

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