A significação como tema na literatura

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Questões relativas à nomeação dos seres e à significação das formas linguísticas têm feito parte da literatura ocidental desde a Antiguidade. A Literatura, por ter como matéria-prima a palavra, e por voltar-se aos efeitos de sentido que essa possa produzir no interlocutor, tem tematizado a relação palavra / referente extralinguístico e a significação com os mais variados propósitos. Os exemplos são inúmeros. Em Antígona, de Sófocles, estabelece-se um conflito entre Creonte, rei de Tebas, e Antígona em decorrência de significados diferentes que ambos atribuem àquilo que seja Justiça, Direito. Para Antígona, é Direito dar sepultura ao irmão Polinices, que morrera lutando por Argos contra Tebas, já que enterrar os mortos é algo natural e de acordo com a lei divina, thémis, por isso ela considera que tem o direito de dar sepultura a seu irmão. Para Creonte, no entanto, Direito não é aquilo que é natural e não emana dos deuses, mas aquilo que está escrito, diké. Para ele, o ato de Antígona de sepultar Polinices, embora seja natural não é Direito, porque não está escrito e, por isso, Antígona foi punida por Creonte, que a prendeu em uma caverna que lhe serviria de túmulo ainda em vida. O conflito reside, pois, no fato de o conceito de Direito poder ser expresso por significantes diferentes, thémis e diké, conforme emana a fonte da lei.

A literatura moderna tem tematizado o significado das formas linguísticas com as mais variadas intenções. No conto A palavra mágica, Vergílio Ferreira explora os deslocamentos semânticos conferidos à palavra inócuo (no conto, os falantes a pronunciam “inoque“), que, de termo neutro (que não causa dano, inofensivo), passa a ter valor negativo (“… como o vocabulário dos pobres era curto, alguém se lembrou da palavra milagrosa…”), usada como insulto a quem é dirigida e assumindo significações variáveis conforme a situação de interação, como vadio, bêbado, ladrão, pederasta, incendiário e, até mesmo, parricida.  No conto, é a ignorância quanto ao real significado de inócuo que leva os falantes a atribuírem a essa palavra significação negativa (“- Que é isso de ‘inoque’?  – Coisa boa não é.“), tornando-se uma forma linguística com “restos de velhos significados, maldições, ódios, desesperos“. Enfim, “inoque” passa a ser a caixa de Pandora em que os falantes passam a guardar toda espécie de veneno.

Em O vagabundo, Guy de Maupassant explora o duplo sentido da palavra que dá título ao conto, ao narrar a história de Jacques Randel, “aprendiz de carpinteiro, vinte e sete anos, bom sujeito“, que numa época de alto desemprego andava “procurando trabalho em toda a parte“, tendo trabalhado como “servente de obra, cavalariço, cortador de pedras; rachou madeira, podou árvores, cavou poços, misturou estrume, amarrou feixes de feno, cuidou de cabras na montanha”. Com fome e extenuado, Randel passa a ser desprezado pela população, que não lhe arruma trabalho, e acaba sendo preso por ser considerado malfeitor, ladrão, delinquente, assassino, enfim, no dizer da população, um vagabundo, que deve ser condenado a vinte anos de prisão (“… tornara-se delinquente, capturado por aqueles caçadores de criminosos que não o soltariam mais.”). Nesse conto, Maupassant trabalha o deslocamento semântico da palavra vagabundo. No início da narrativa, Randel, que é trabalhador, é referido por vagabundo porque vagueia à procura de emprego. Para os habitantes do local, no entanto, ele é alguém que ameaça a ordem estabelecida, o que leva a população a uma ressemantização do signo vagabundo, que passa a ser usado com a significação de delinquente, marginal, desonesto

Em Viagens de Gulliver, Jonathan Swift narra episódio da visita do protagonista à Academia de Lagado, onde, na escola de línguas, três professores estudam uma maneira de aperfeiçoar a língua. Uma das propostas consistia em “… abolir todas as palavras, fossem elas quais fossem…” e que as pessoas trouxessem consigo, carregando nas costas, as coisas de que precisassem falar. Essa proposta não foi posta em prática porque “… as mulheres, aliadas ao vulgo e aos ignorantes…” ameaçaram rebelar-se a fim de manter “a liberdade e falar com suas línguas, à maneira de seus antepassados“.

A discussão sobre o ato de nomear como forma de preservação da memória já aparece no Fedro, de Platão (428 – 327 a. C). Nele, relata-se que Sócrates rejeitava a palavra escrita porque ela poderia significar a perda da memória. Para esse filósofo grego, a escritura, por ser exterior à memória, era nociva, pois não revelava a verdade, mas apenas a aparência.

Nesse diálogo platônico, Sócrates narra que a escrita teria sido inventada pelo deus Theuth, que a mostra ao rei do Egito, Thamuz, dizendo que aquele invento tornaria os egípcios mais sábios. Thamuz retruca, contra-argumentando que a escrita produziria justamente efeito contrário; pois, assim como ocorre com a pintura, a escritura não é viva; pois, quando perguntamos algo ao texto escrito, ele se limita a dizer sempre a mesma coisa.

Essa discussão entre Thamuz e Theuth é analisada e desconstruída por Derrida, no livro A farmácia de Platão, que mostra que os pontos de vista opostos dos dois interlocutores têm por base a cadeia de significações da palavra grega phármakon, que tanto pode ser empregada para designar remédio, algo que cura, ou veneno, algo que mata.

A literatura contemporânea tem se voltado para a nomeação como forma de preservar a memória e, mais que isso, como forma de construção simbólica da realidade, uma vez que a realidade literária não é a do referente material, mas a ficcional, instaurada e atualizada no e pelo discurso, por meio de signos.

O mundo fantástico de García Márquez, em Cem anos de solidão, é campo fértil para a tematização do ato fundador da linguagem. Nessa obra, um narrador heterodiegético relata que uma peste atacou o povoado de Macondo causando insônia e perda da memória de seus habitantes. Para defender a população do esquecimento, o personagem José Arcadio Buendía põe em prática um método que aprendera com seu filho Aureliano.  A seguir, apresentamos o trecho do romance que relata esse fato.

Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com perfeição a arte da ourivesaria. Um dia, estava procurando a velha bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: “tás”. Aureliano escreveu o nome num papel e pregou com cola na base da bigorninha: tás. Assim, ficou certo de não esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira. (Márquez,1995, p. 50).

Esse trecho de Cem anos de solidão permite-nos refletir sobre como se dá a relação entre os nomes e as coisas e também sobre a questão do significado das expressões linguísticas.

Os nomes nos remetem às coisas que representam e nossa relação com o mundo se dá por meio de signos. Quando José Arcadio marca as coisas com nomes, ele não apenas afasta o problema da perda de memória; com isso, passa, por meio de palavras, a construir significados e, ao construí-los, dá existência às coisas. Manguel (2008, p.18) afirma que “a linguagem não se limita a nomear, ela também confere existência à realidade”. É o que ocorre em Cem anos de solidão: pelo processo da nomeação instaura-se uma nova realidade. A partir dela, a mítica Macondo ganha existência, mesmo que seus habitantes continuem isolados do mundo. Se para Bakhtin (2002, p. 108) “os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal […]”, para os habitantes de Macondo, a língua inaugura uma nova corrente de comunicação verbal pelo ato de nomear.

García Márquez, nessa passagem, deixa claro que a significação só se concretiza pelo uso que os falantes fazem da língua num processo de interação. Como a linguagem é um processo interacional e o significado decorre do uso, a nomeação que Arcadio Buendía dá às coisas ele vai buscar em sua memória cultural, ou seja, a ligação entre o símbolo (as palavras) e o referente (a coisa extralinguística) se faz por meio da referência, ou seja, o conceito que existe em sua mente.

No texto de García Márquez, José Arcadio não nomeia as coisas de que os habitantes de Macondo estavam se esquecendo com nomes novos. A vaca, ele continua a chamar de vaca; o porco, de porco; o cabrito, de cabrito e a bananeira, de bananeira, atualizando nomes armazenados em sua memória enciclopédica.

 Voltando ao texto de Antígona, o conflito decorre do fato de que a referência a um mesmo referente não ser a mesma para ambos os falantes, daí ser feita por símbolos diferentes (thémis e diké, respectivamente).

A ideia de que não há uma relação direta entre o símbolo e o referente não é nova. Em Crátilo, Platão (2001) discute, entre outras coisas, qual o poder que faz com que os nomes possam representar as coisas, as mudanças no significado dos nomes e casos em que a relação do nome com a coisa é convencional ou não. Aristóteles (2004, p. 16) já fazia referência ao caráter imotivado do signo linguístico quando afirma, no Organon, que “o nome é um som vocal, possuindo uma significação convencional sem referência ao tempo, do qual nenhuma parte apresenta significação, quando tomada separadamente”. Na Idade Média, os escolásticos afirmavam “vox significat mediantibus conceptibus”, ou seja, a palavra significa por meio de conceitos. O conceito de que não há relação direta entre as palavras e as coisas que designam é fundamental na medida em que deixa claro que a palavra não é a coisa. A palavra cachorro não morde e não tem quatro patas e aplica-se, inclusive, a cachorros que ainda não nasceram.      

Volto a esse assunto no próximo post comentando o conto Famigerado, de Guimarães Rosa.

Referências

ARISTÓTELES. Organon. São Paulo: Edipro, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Annablume; Hucitec, 2002.

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 2005.

FERREIRA, Vergílio. O poder da palavra. Disponível em: < https://passarinhotrigueiro.files.wordpress.com/2011/11/a-palavra-mc3a1gica.pdf >. Acesso em: 28 mar. 2024.

MANGUEL, Alberto. A cidade das palavras: as histórias que contamos para saber quem somos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. 41. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.

MAUPASSANT, Guy de. O vagabundo. In: MAUPASSANT, Guy de. 125 contos de Guy de Maupassant. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 663-674.

PLATÃO. Crátilo. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. PLATÓN. Fedón/ Fedro. Madri: Alianza Editorial, 2005.

SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 1999.

SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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