Tempo de leitura: 13 minutos
Para este artigo, escolhi um conto bastante leve e divertido do autor português Vergílio Ferreira (1916 – 1996) chamado “A palavra mágica”.
Lembram daquela brincadeira chamada Telefone sem fio? Uma pessoa conta uma história que deve ser contada a outra e esta deve contar a outra e assim por diante. A graça da brincadeira está no fato de que cada um conta a história a modifica um pouco.
O conto de Vergílio Ferreira, de certa forma, lembra essa brincadeira, mas sua base não é uma história, mas uma simples palavra. A palavra mágica a que o título faz referência é o adjetivo inócuo, que os habitantes do local onde se passa a história pronunciam “inoque”.
O humor do conto resulta de um recurso antigo, o quiproquó, que remonta às comédias latinas de Plauto e Terêncio. Como se sabe, o quiproquó é a confusão que se estabelece ao tomar uma coisa (qui) pela (pro) outra (quo).
No conto, o quiproquó resulta da confusão dos falantes quanto ao sentido de inócuo que, de termo neutro (aquilo que não causa dano; que não é prejudicial, inofensivo, ), passa, por deslizamentos semânticos, a ter sentidos negativos, usado como forma de insulto a quem é dirigido. O interessante, no conto, é que o sentido de inócuo vai se tornando cada vez mais ofensivo à medida em que vai sendo usado pelas pessoas, assumindo sentidos como vadio, bêbado, ladrão, pederasta, incendiário e chegando até a significar parricida.
No conto, é a ignorância quanto ao verdadeiro significado de inócuo que leva os falantes a atribuir a essa palavra sentido negativo (“Que é isso de inoque? – Coisa boa não é.”), tornando-se uma forma linguística com “restos de velhos significados, maldições, ódios, desesperos”. Enfim, “inoque” passa a ser a caixa de Pandora em que os falantes passam a guardar toda espécie de veneno.
Gostaria de lembrar que Vergílio Ferreira é um importante nome da literatura portuguesa, diria melhor, da literatura em língua portuguesa e nós, falantes da língua portuguesa, não podemos ficar afastados da literatura que se produziu e ainda se produz nesta língua, seja aqui, seja em Portugal, seja nos países africanos em que se fala o português. Afastar nossos alunos da literatura que se produziu em Portugal é cuspir no prato em que se comeu. E, para finalizar, reproduzo na íntegra o conto de Vergílio Ferreira, para que aqueles que não o conhecem possam lê-lo e se divertir um pouco.
A palavra mágica
Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às vezes guerreava, com palavras azedas para cá e para lá, era apenas com os fundos da própria consciência. Viúvo, sem filhos, dono de umas leiras herdadas, o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de alijar bem depressa o dinheiro das rendas. Semeava tão facilmente as economias, que ninguém via naquilo um sintoma de pena ou de justiça — mesmo da velha —, mas apenas um desejo urgente de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa dele derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava nada, livros ou cadernos ao filho, que andava na instrução primária. As moedas rolavam-lhe para dentro da algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam para fora, deixando-lhe, no sítio, a paz.
Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colérica com o Ramos da loja. Fora o caso que ao falar-lhe, no correr da conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que, no seu entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada não era de forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discórdia, facilmente, abertamente, com a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia, o Ramos, ferido de espora, atacou de cabeça baixa:
— Que autoridade tem você para falar? Quem lhe encomendou o sermão?
— Homem! — clama o Silvestre, de mão pacífica no ar. — Calma aí, se faz favor. Falei por falar.
— E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importância. Sabe lá você o que é a vida, sabe lá nada. Não tem filhos em casa, não tem quebreiras de cabeça. Assim, também eu.
— Faço o que posso — desabafou o outro.
— E eu a ligar-lhe. Realmente você é um pobre diabo, Silvestre. Quem é parvo é quem o ouve. Você é um bom, afinal. Anda no mundo por ver andar os outros. Quem é você, Silvestre amigo? Um inócuo, no fim de contas. Um inócuo é o que você é.
Silvestre já se dispusera a ouvir tudo com resignação. Mas, à palavra “inócuo”, estranha ao seu ouvido montanhês, tremeu. E à cautela, não o codilhassem por parvo, disse:
— «inoque» será você.
Também o Ramos não via o fundo ao significado de inócuo. Topara por acaso a palavra, num diálogo aceso de folhetim, e gostara logo dela, por aquele sabor redondo a moca grossa de ferros, cravada de puas. Dois homens que assistiam ao barulho partiram logo dali, com o vocábulo ainda quente da refrega, a comunicá-lo à freguesia:
— Chamou-lhe tudo, o patife. Só porque o pobre entendia que a jorna de um homem é fraca. Que era um paz-de-alma. E um «inoque».
— Que é isso de «inoque»?
— Coisa boa não é. Queria ele dizer na sua que o Silvestre não trabalhava, que era um lombeiro, um vadio.
Como nesse dia, que era domingo, Paulino entrara em casa com a bebedeira do seu descanso, a mulher praguejou, como estava previsto, e cobriu o homem de insultos como não estava inteiramente previsto:
— Seu bêbado ordinário. Seu «inoque» reles.
Quando a palavra caiu da boca da mulher, vinha já tinta de carrascão. E desde aí, «inoque» significou, como é de ver, vadio e bêbado.
Ora tempos depois apareceu na aldeia um sujeito de gabardina, a vender drogas para todas as moléstias dos pobres. Pedra de queimar carbúnculos, unguentos de encoirar, solda para costelas quebradas. Vendeu todo o sortido. Mas logo às primeiras experiências, as drogas falharam. Houve pois necessidade de marcar a ferro aquela roubalheira de gabardina e unhas polidas. E como o vocabulário dos pobres era curto, alguém se lembrou da palavra milagrosa do Ramos. Pelo que, «inoque» significou trampolineiro ou ladrão dos finos. Mas como havia ainda os ladrões dos “grossos”, não foi difícil meter dentro da palavra mais um veneno.
Como, porém, as desgraças e a cólera do povo pediam cada dia termos novos para se exprimirem, “inócuo” foi inchando de mais significações. Quando a Rainha deu um tiro de caçadeira, num dia de arraial, ao homem da amante, chamaram-lhe, evidentemente, «inoque», por ser um devasso e um assassino de caçadeira. Daí que fosse fácil meter também no «inoque» o assassino de faca e a cróia de porta aberta.
“Inócuo” dera a volta à aldeia, secara todo o fel das discórdias, escoara todo o ódio da população. A moca grossa de ferro, seteada de puas, era agora uma arma terrível, quase desleal, que só se usava quando se tinha despejado já toda a cartucheira de insultos. Até que o Perdigão dos Cabritos entrou pela ponte norte da aldeia, com o cavalo carregado de reses, num dia de feira, e se azedou com o taberneiro, quando trocava um borrego por vinho. De olhos chamejantes, perdido, já no quente da refrega, o taberneiro atirou-lhe o verbo da maldição. Houve quem achasse desmedida a vingança do homem. Perdigão arriou:
— «Inoque» será você.
Também ele não sabia que veneno tinham despejado na palavra, mas, pelo sim pelo não, aliviou. E pela tarde, enfardelou o termo infame com as peles da matança, e abalou com ele pela ponte sul. Longos meses a palavra maldita andou por lá a descarregar o ódio das gentes. Até que um dia voltou a entrar na aldeia, não já pela ponte sul que dava para a Vila, mas pela ponte norte que levava a terras sem nome. Vinha em farrapos, na boca de um caldeireiro, mais estropiada, coberta da baba de todos os rancores e de todos os crimes. Quando deitava um pingo num caneco de folha, o caldeireiro pegou-se de razões com o freguês. O dono do caneco correu uma mão amiga pelas costas do vagabundo:
— Lá ver isso, velhinho. O combinado foram cinco tostões.
— Não me faça festas que eu não sou mulher, seu «inoque» reles.
E “inócuo” significou um nome feio para um homem. Então o ajudante, ou o que era, do caldeireiro, tentou deitar água na fogueira.
— Cale-se também você, seu «inoque» ordinário. A mim não me mata você à fome como fez a seu pai.
Porque “inócuo” também queria dizer parricida. Então o Ramos, que passava perto, tomou a palavra excomungada nas mãos e pediu ao velho que a abrisse, para ver tudo o que já lá tinha dentro. Um cheiro pútrido a fezes, a pus, a vinagre, alastrou pelo espanto de todos em redor. Com os dedos da memória, o caldeireiro foi tirando do ventre do vocábulo restos de velhos significados, maldições, ódios, desesperos. “Inócuo” era “bêbado”, ‘ladrão”, “incendiário’, ‘pederasta’, e, uma que outra vez, um desabafo ligeiro como “poça” ou “bolas”. Para o calão da gente fina, que topara a palavra na cozinha, nos trabalhos do campo, soube-se um dia que significava ainda ‘escroque’, «souteneur», e mais.
A aldeia em peso tremeu. Era possível a qualquer apanhar com o palavrão na cara e ficar coberto de peste. Eis porém que uma vez o filho do Gomes, que andava no colégio da Vila, insultado de «inoque» por um colega, numa partida de bilhar, lembrou-se à noite de ver no dicionário a fundura vernácula da ofensa. Procurou «inoque». Não vinha. Procurou «noque». Também não vinha. Furioso, buscou à toa, «quinoque», «moque», «soque». Nada. Quando a mãe o procurou, para ver se estudava, encontrou-o às marradas no dicionário. Choroso, o rapaz declarou:
— O meu «pagnon» chamou-me «inoque», mãe. Queria saber o que era. Mas não vem no dicionário.
— Não vejas! — clamou a mulher, de braços no ar. — Deixa lá! Não te importes.
— Mas que quer dizer?
— Coisas ruins, meu filho. Herege, homem sem religião e mais coisas más. Não vejas!
Começaram então a aparecer as primeiras queixas no tribunal da Vila, contra a injúria de «noque», «inoque» e, finalmente, de “inócuo”, consoante a instrução de cada um. Como a palavra estropiada era um termo bárbaro nos seus ouvidos cultos, o juiz pedia a versão da injúria em linguagem correcta, sendo essa versão que instruía os autos.
— Chamou-me «noque».
— Absolutamente. Mas que queria ele dizer na sua?
— Pois queria dizer que eu era ladrão.
E escrevia-se “ladrão”. Pelo mesmo motivo, gravava-se a ofensa, de outras vezes, nos termos de “assassino”, “devasso”, ou “bêbedo”.
Ora um dia foi o próprio Bernardino da Fábrica que moveu um processo ao guarda-livros pela injúria de «inócuo». Metida a questão nos trilhos legais, o Bernardino procurou o juiz, para ver se podia ajustar, previamente, uma bordoada firme no agressor. Mas aí, o juiz atirou uma palmada à coxa curta, clamou:
— Homem! Agora entendo eu. «Noque» era ‘inócuo’!
E admitindo que o vocábulo contivesse um veneno insuspeito, pegou num dicionário recente, o último modelo de ortografia e significados. Então pasmou de assombro, perante o escuro mistério que carregara de pólvora o termo mais benigno da língua: “inocuo’ significa apenas «que não faz dano, inofensivo”. E pôs o dicionário aberto diante da ofensa de Bernardino. O industrial carregou a luneta, e longo tempo, colérico, exigiu do livro insultos que lá não estavam.
— Nada feito — repetia o juiz. — O homem chamou-lhe, correctamente, “pessoa incapaz de fazer mal a alguém”.
— Mas há a intenção — opôs o advogado, mais tarde, quando se voltou ao assunto. — Há o sentido que toda a gente liga à palavra.
— Nada feito — insistia o juiz. — “Inócuo” é ‘inofensivo’ até nova ordem.
Então o advogado desabafou. Também ele sabia, como toda a gente culta, que “inócuo” era um pobre diabo dum termo que não fazia mal a ninguém. Sabia-o, com um saber analítico, desde as aulas de Latim do seu Padre Mestre. Mas não ignorava também que o ódio humano nem sempre conseguia razões para se justificar. E nesse caso, qualquer palavra, mesmo inofensiva, era um pendão desfraldado no pau alto da vingança. Bernardino fora ofendido. Mas podia querer amanhã ofender e as razões serem curtas para o seu rancor. Uma palavra informe, soprada de todos os furores, seria então a melhor arma. Despir o mastro da bandeira seria desnudar-se na dureza bárbara do pau. ‘Inócuo’ era uma maravilha para a última defesa da racionalidade humana, pelos ocos esconderijos onde podiam ocultar-se todos os rancores e maldições. “Inócuo” era um benefício social. Não havia que emendar-se a vida pelo dicionário. Havia que forçar-se o dicionário a meter a vida na pele.
— Cultive-se o “inócuo”. Salvemo-lo, para nos salvarmos.
Desgraçadamente, porém, os receios do advogado eram vãos. A vida, de facto, emendara o dicionário. Como bola de neve, “inócuo” rolara do ódio alto dos homens e longo tempo levaria a derreter o calor da compreensão e da justiça. Foi assim que o filho do Gomes, depois de ter encontrado a correspondência vernácula da injúria do «pagnon», tentou reabilitar a palavra excomungada. Esbaforido, foi com o dicionário aberto no sítio maldito, da mãe para o pai, do pai para os amigos. Mas ninguém o entendeu. «Noque» ou “inócuo” era um anátema verde de pus.
— Que importa o que dizem? — clamou o heroísmo do rapaz. — Podem chamar-me «inoque» ou “inócuo”, que não ligo. Agora sei o que quer dizer.
Dias depois, porém, um colega precisou de o insultar, e arremessou-lhe outra vez com o termo nefando. Toda a gente conhecia já a opinião do dicionário. Mas o furor era sempre mais forte do que o simples livro impresso.
Pelo que, nessa noite, o filho do Gomes não dormiu, preocupado apenas com descobrir uma maneira profícua de sovar bem o colega, para desforra integral.