A ovelha negra

Tempo de leitura: 4 minutos

Por Ernani Terra ©

O governo era uma associação de delinquentes vivendo à custa dos súditos…” (Italo Calvino)

Li anteontem, na seção de reclamações de leitores da Folha de S. Paulo,  a carta de um leitor afirmando que não consegue encontrar, na rede de concessionárias de veículos da marca X, um par de lanternas para seu carro que haviam sido furtadas.

Bingo!

Não há lanternas na concessionária, cresce o número de furtos desse acessório, impulsionando um mercado paralelo de fornecimento de lanternas do veículo X. A escassez do produto faz com que o preço dispare nos desmanches que vendem peças roubadas. Como combater esse crime? Simples: basta a montadora cumprir o que determina o Código de Defesa do Consumidor, dispor de peças para substituição a um preço justo.

Mas o que isso tem a ver isso com literatura, um dos assuntos deste blogue? Muito, pois a literatura nos traz o real mesmo que ele não tenha ainda acontecido.

Ao ler a a carta sobre o furto das lanternas, imediatamente  me veio à memória um conto do Italo Calvino chamado A ovelha negra, que está no livro Um general na biblioteca, publicado pela Companhia das Letras. A minha edição é de 2001 (vejam a foto da capa), mas creio que o livro ainda deva estar em catálogo e deve haver uma edição mais recente. Se você não leu esse conto, segue um resuminho.

Trata-se de uma história  narrada por um observador (narração em 3a.pessoa) de um acontecimento passado, que tem por espaço um país onde todos eram ladrões. O parágrafo que abre o conto apresenta uma única frase: “Havia um país onde todos eram ladrões“.

Nesse país, cada morador roubava seu vizinho. Como todos roubavam a todos, o país vivia em paz, pois aquele que tinha sido roubado  compensava a perda roubando o outro. Como se o sujeito que teve as lanternas do carro roubadas, para compensar roubasse as de um segundo, que, por sua vez, roubasse de um terceiro, que, por sua vez, roubasse… Lembra a Quadrilha, do Drummond?

Numa das passagens do conto o narrador:

“E assim todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, e este, um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último que roubava o primeiro. O comércio naquele país só era praticado como trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinquentes vivendo à custa dos súditos, e os súditos por sua vez só se preocupavam em fraudar o governo. Assim a vida prosseguia sem tropeços, e não havia ricos nem pobres”.

Sem que se soubesse de onde viera, aparece no país um homem honesto, que, em vez de sair para roubar como todos os outros, ficava em casa, lendo romances e fumando. Os ladrões, vendo as luzes da casa do homem honesto acesas, não entravam para roubar. Era preciso que o homem honesto compreendesse que não roubando, alguma família ficava sem comer. O homem honesto passa então a sair de casa à noite, mas, ao contrário dos outros, não roubava ninguém. Quando retornava, via que sua casa fora roubada. Em menos de uma semana, o homem honesto não tinha mais nada, nem o que comer. Mas essa atitude criou uma grande confusão, porque como ele não roubava ninguém, sempre havia alguém que saía para roubar e que, quando voltava, encontrava a casa intacta. Alguns, por causa disso, acabaram ficando ricos e não queriam mais roubar. Os que iam roubar a casa do homem honesto acabaram ficando pobres, pois não encontravam nada para roubar. Os que ficaram ricos pegaram o costume de à noite ir à ponte ver o rio passar. Os ricos perceberam que indo até a ponte, ficariam pobres e resolveram pegar os pobres para roubar por eles, mas continuavam ladrões porque viviam enganando os outros. Os ricos foram se tornando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres. Os ricos não precisavam mais roubar, mas pagavam aos pobres para roubar para não ficarem pobres e pagavam aos mais pobres dos pobres para se defenderem de outros pobres. Assim, instituíram a polícia e construíram as prisões. Anos depois não se falava em roubar ou não roubar, mas apenas de ricos e pobres, mas todos continuavam a ser pobres. Honesto só tinha havido aquele homem, que morreu logo, de fome.

Uma bela fábula dos tempos modernos em que se roubam até lanternas de carro num país cujo governo é uma associação de delinquentes.

PS.: Antes que algum dono de desmanche resolva me processar, esclareço que na frase “A escassez do produto faz com que o preço dispare nos desmanches que vendem peças roubadas”, a oração “que vendem peças roubadas” é uma adjetiva restritiva, observe que não a separei da anterior por vírgula. Isso quer dizer que ela não se aplica a todos os desmanches, mas apenas e tão somente àqueles que praticam o crime de vender peças roubadas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.