Tempo de leitura: 4 minutos
Falei, no último post, que há bens públicos e privados e que a língua que falamos é um bem. Neste artigo, concluo o assunto, mostrando que a língua é, ao mesmo tempo, um bem público e privado.
O caráter público da língua
Vimos que são considerados públicos os bens de uso comum das pessoas. Nesse sentido, não há como deixar de considerar a língua como um bem público, já que é de uso comum dos que dela se utilizam para atos de comunicação.
A língua é exterior aos indivíduos e, por isso, eles não podem criá-la ou modificá-la individualmente. Ela só existe em decorrência de uma espécie de contrato coletivo que se estabeleceu entre as pessoas e ao qual todos aderiram. A língua portuguesa, por exemplo, pertence a todos aqueles que dela se utilizam. No caso de línguas como português, inglês e espanhol, só para citar alguns exemplos, esse bem público é meio de comunicação de pessoas de vários países; elas são, portanto, línguas multinacionais.
A língua portuguesa é utilizada não somente no Brasil, mas também em Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Macau e Timor Leste. Atualmente, também é falada em alguns lugares da América do Norte e da Europa, onde há concentração de migrantes de língua portuguesa.
Quando falamos em caráter público da língua, estamos nos referindo ao seu aspecto social, vale dizer, a sociedade nos impõe a língua com a qual nos devemos comunicar se quisermos ser compreendidos; por isso, quando mudamos para um país cuja língua é diferente da nossa, somos forçados a usar a língua daquele país para interagir com os outros.
O caráter privado da fala
A língua pertence a toda a comunidade de falantes, que podem utilizá-la como meio de comunicação. A utilização que cada indivíduo faz da língua, a fala, por outro lado, possui um caráter privado, ou seja, pertence exclusivamente ao indivíduo que a utiliza. É o aspecto individual da linguagem humana.
Cada um dos mais de duzentos milhões de falantes da língua portuguesa apropria-se da língua que fala com animus domini, isto é, com o ânimo de quem se sente dono dela, utilizando-a com todas as prerrogativas que lhe confere o domínio sobre esse bem, dentro de alguns princípios preestabelecidos pela comunidade de falantes.
A dicotomia entre língua e fala permite verificar que a linguagem humana, ao contrário dos demais bens (que são públicos ou privados), possui, ao mesmo tempo, as características de bem público e privado, de coletivo e individual, de abstrato e concreto. A língua é o lado público, coletivo e abstrato da linguagem humana, ao passo que a fala é seu lado privado, individual e concreto. Encarada como um bem público, a língua é uma instituição social de caráter abstrato: é instituição porque é uma estrutura decorrente da necessidade de comunicação, com um conjunto de convenções necessárias para permitir o exercício da faculdade da linguagem aos indivíduos; é social porque, sendo exterior aos falantes, pertence à comunidade linguística como um todo; é abstrata porque só se realiza por meio da fala.
O semiólogo francês Roaland Barthes, em sua obra Elementos de semiologia (Editora Cultrix) afirma
Como instituição social, ela [a língua] não é absolutamente um ato, escapa a qualquer premeditação; é a parte social da linguagem; o indivíduo não pode, sozinho, nem criá-la nem modificá-la. Trata-se essencialmente de um contrato coletivo ao qual temos de submeter-nos em bloco se quisermos nos comunicar; além disto, esse produto social é autônomo, à maneira de um jogo com suas regras, pois só se pode manejá-lo depois de uma aprendizagem.
Embora sejam coisas diferentes, há uma interdependência entre língua e fala, uma não existe sem a outra, como afirma Saussure no Curso de linguística geral (Editora Cultrix)
… esses dois objetos [língua e fala] estão estritamente ligados e se implicam mutuamente; a língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça; historicamente, o fato da fala vem sempre antes.
Por ser um bem privado, a fala é um ato individual: cada falante tem o domínio da língua que fala e, em decorrência disso, pode usá-la como bem lhe aprouver dentro das regras preestabelecidas pelo contrato coletivo ajustado com os demais falantes.