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“A língua é um bem pessoal na medida em que é um bem coletivo.” (Tatiana Slama-Cazacu)
Quando vemos um automóvel andando pelas ruas, não temos a menor dúvida de que ele possui um dono. O mesmo se pode dizer de uma bicicleta, de uma casa, de um sítio, de uma loja, de uma drogaria etc. A maioria das coisas existentes na sociedade possui efetivamente um dono, ou seja, pertence a alguém.
Passamos grande parte de nossa vida procurando adquirir coisas que satisfaçam nossas necessidades e que também nos tragam prazer, conforto, informação e cultura. Muitas pessoas compram carros, casas, roupas, joias, livros, revistas etc. porque acreditam que a propriedade desses bens lhes permitirá atender a várias de suas necessidades, trazendo-lhes satisfação.
As pessoas sempre buscam entrar em conjunção com algo que para elas tem algum valor, e não precisam ser necessariamente objetos concretos, materiais. Os objetos de valor também podem ser abstratos, como felicidade, amor, prosperidade, saúde, riqueza, prestígio, poder etc. Muitas vezes, esses valores abstratos estão corporificados em objetos concretos. Assim, um automóvel para algumas pessoas representa o valor abstrato riqueza; para outros, comodidade. Um objeto de valor como uma roupa pode representar valores como juventude, esportividade, seriedade etc.
Quando se é dono de alguma coisa, dizemos que se tem o domínio sobre ela. Em decorrência disso, o titular do domínio (o proprietário) pode usar a coisa e dispor dela. No caso do automóvel, seu proprietário tem o direito de não somente usá-lo para trabalhar, ou passear, conforme queira, mas também de dispor dele, ou seja, poderá emprestá-lo a um amigo, vendê-lo, ou até mesmo doá-lo a quem quer que seja. Da mesma forma, quem tem a propriedade de uma casa na praia tem o direito de usá-la (para passar as férias de verão, por exemplo), bem como de dispor dela, emprestando-a a um amigo, ou alugando-a para outrem, auferindo com isso alguma vantagem. Tanto o automóvel quanto a casa não são propriamente coisas. Na verdade, devemos considerá-los como objetos de valor, ou bens.
Damos o nome de bem àquilo que, por ser útil ao homem, pode ser objeto de apropriação. Em sentido amplo, dizemos que bem é tudo aquilo que é vantajoso a um dado fim. Chamamos de coisa a tudo aquilo que existe objetivamente, com exceção do ser humano. Coisa opõe-se, portanto, a pessoa. A coisa não pertence a si mesma, mas pode ser possuída.
Existem, no entanto, muitas coisas úteis ao homem que não podem ser consideradas bens. O ar, por exemplo. Embora necessário e útil ao ser humano, não pode ser considerado um bem, já que, por existir em abundância, não possui valor econômico. O ar está à nossa disposição gratuitamente. Por não haver escassez, ninguém tem a preocupação de se apropriar dele, armazenando-o, por exemplo.
Como vimos, a propriedade de algum bem confere ao titular do domínio o direito de usar e dispor dele. No entanto, sabemos que esse direito do proprietário não é absoluto, ou seja, ele sofre restrições impostas pelo grupo social em que vive.
O proprietário de um automóvel tem o direito de usá-lo, porém o uso que poderá fazer de seu bem não é ilimitado, já que há restrições de ordem pública, balizando o direito de uso, leis que regulamentam o tráfego de veículos automotores, proibindo que se ultrapassem determinadas velocidades, que se estacione em determinados locais, que não se fale ao celular enquanto dirige etc. Também não se pode dirigir um veículo se o condutor não tiver habilitação legal para isso, ou se o veículo não apresentar condições de uso (pneus carecas, falta de faróis e lanternas etc.). Em muitas cidades, há restrições impedindo que, em determinados dias, horários e locais, veículos automotores não podem circular, a fim de restringir o tráfego e/ou diminuir os índices de poluição.
Igualmente, o proprietário de um imóvel somente poderá usá-lo se respeitar algumas limitações impostas pela lei. Um imóvel residencial, localizado em área destinada para esse fim, não poderá ser usado, por exemplo, para promover bailes noturnos com venda de ingressos, pois esse uso não estaria vinculado à sua finalidade, que é servir de residência.
Classificação dos bens
Os bens podem ser classificados em públicos e privados. Essa classificação é feita levando-se em conta quem é o titular do domínio – ou, em outras palavras, quem é o proprietário do bem.
Damos o nome de bens públicos àqueles de domínio nacional, ou seja, àqueles que pertencem à União, aos estados da federação ou aos municípios. Todos os demais bens são, por consequência, bens privados, pertençam a quem pertencerem.
São também considerados bens públicos aqueles de uso comum do povo, como as praias, os rios, os lagos, as estradas, as ruas, as avenidas e as praças. Esse tipo de bem público pode ser utilizado por qualquer pessoa, desde que, evidentemente, sejam respeitadas as limitações de uso impostas pela lei. Podemos andar de carro por ruas e estradas, mas obedecendo às imposições fixadas pelo poder público, como limite de velocidade, pagamento de pedágio, obediência à mão de direção etc.
A língua que você fala é um bem
Se retomarmos o conceito de bem – bens são aquelas coisas que, por serem úteis ao homem, são objeto de apropriação –, podemos concluir que a língua que falamos é um bem, por se encaixar perfeitamente na definição apresentada.
Em primeiro lugar, ela é útil e vantajosa ao homem. Esse primeiro aspecto é inquestionável, pois a língua que falamos é nosso principal instrumento de comunicação e não conseguimos viver em sociedade sem nos comunicarmos. E, como vivemos em sociedade, ela, além de útil e vantajosa, é necessária à nossa existência.
Para que se tenha uma ideia da utilidade da língua, é só imaginar a vida em sociedade sem sua existência. No atual estágio da humanidade, é impossível concebermos uma sociedade em que não haja língua como meio de comunicação entre seus integrantes. Onde houver sociedade humana, haverá língua. Ou ainda: onde houver língua, haverá sociedade humana.
Por outro lado, a língua é objeto de apropriação pelo homem. Desde muito pequenos, por volta dos 18 meses de idade, começamos a nos apropriar desse versátil instrumento de comunicação. Esse processo de apropriação da língua que falamos nos acompanhará pela vida inteira, só cessando pela morte, ou pela afasia, que é a perda da função representativa da linguagem em decorrência de doenças orgânicas do cérebro ou de traumatismos causados por acidentes.
Os bens – e a língua, como vimos, é um bem – existem para que possamos usufruir deles. Adquirimos bens para que eles nos possam ser úteis, trazendo-nos prazer, conforto, cultura, informação. Uma pessoa que acumula bens somente por acumulá-los, como o avarento, evidentemente padece de algum problema.
Para que serviria a língua, se não pudéssemos utilizá-la? Evidentemente, para nada.
No próximo post darei prosseguimento a esse assunto, que é tratado no nosso livro Linguagem, língua e fala, publicado pela Editora Saraiva.