A formação do leitor literário

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Este artigo reproduz minha fala no I Colóquio Internacional de Literatura e Estudos da Linguagem (CILEL), na Universidade do Estadual do Maranhão (Uema), campus Bacabal, do qual tive a honra e o prazer de participar a convite da professora Linda Maria.

A formação do leitor literário

A formação do leitor literário é um assunto vasto, o que me obriga a fazer um esforço para que minha fala não ultrapasse o tempo previsto pela organização deste colóquio. Pretendo mostrar como o aparato teórico da semiótica discursiva pode ajudar em muito no desenvolvimento da competência leitora e na formação do leitor literário. Isso porque a semiótica procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz. Para melhor compreensão do tema, organizei minha fala da seguinte forma:

· discutirei que a leitura de um texto literário é diferente da dos chamados textos utilitários;

· apresentarei uma noção de texto;

· mostrarei que o texto apresenta dois planos solidários, uma expressão e um conteúdo;

· comentarei que os textos literários são figurativos;

· destacarei que, para explicar o sentido dos textos, a semiótica se vale de um modelo teórico, denominado percurso gerativo do sentido;

I- INTRODUÇÃO

No título A formação do leitor literário, o núcleo é o substantivo formação, que sinaliza um processo de aspecto contínuo, durativo, imperfectivo; pois o sentido de formação, nesse caso, é aquilo que se desenvolve continuamente, vale dizer, a formação não é processo visto como acabado, mas como algo que se estende no tempo.

Esse nome formação tem por complemento o sintagma leitor literário, cujo núcleo é o substantivo leitor, que vem qualificado pelo adjetivo restritivo literário. Aprendemos com nossos professores de português no ensino fundamental que restritivo, ao contrário de explicativo, limita a extensão do nome a que se refere. Assim, o leitor literário está dentro de um conjunto mais amplo, o dos leitores em geral. No entanto, a leitura literária exige, habilidades específicas, o que vai configurar um tipo especial de leitor. Dessa forma, o leitor literário deve possuir todas as habilidades do leitor comum, por exemplo

1. perceber que o sentido de um texto vai além da soma das frases;

2. que as frases mantêm relações sintáticas e semânticas;

3. que conectores estabelecem relações de sentido entre partes do texto;

4. que o texto apresenta movimentos de antecipação e retomada (os fóricos);

5. que o sentido de certas palavras está atrelado à enunciação (refiro-me aos dêiticos);

6. que há conteúdos não manifestados pressupostos e subentendidos;

7. que algo que se afirma no enunciado pode estar sendo negado na enunciação etc.

A formação do leitor literário pressupõe todas essas habilidades e mais algumas que são específicas para a leitura de textos dessa esfera discursiva. Em suma: não se lê um texto literário da mesma forma que se lê um texto genérico. Por quê?

A resposta é: em decorrência da coerção do gênero. Não se lê um poema como se lê uma notícia de jornal, por exemplo. Todos conhecem o Poema tirado de uma notícia de jornal, de Manuel Bandeira.

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

O título, assim como o autor, Manuel Bandeira, a obra em que foi publicada, Libertinagem, já sinalizam que se trata de um poema e não de uma notícia (embora uma notícia deva ter sido o mote para a criação do poema). Portanto, o gênero já impõe um protocolo de leitura: ler o texto de Bandeira como um poema e não como notícia. Em sua leitura, serão mobilizadas estratégias que orientam a leitura de textos artísticos, simbólicos. Notem que palavras do texto, as figuras de que falarei adiante, são marcadas por uma carga simbólica forte, revestindo temas: João Gostoso (a sensualidade); carregador de feira livre (a simplicidade); Babilônia (a confusão); há uma sequência de ações que denotam euforia (bebeu, cantou, dançou), mas somos surpreendidos por um final disfórico, trágico (atirou-se na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado).

II- A NOÇÃO DE TEXTO

Para definir texto, recorro ao aparato teórico da semiótica discursiva. Me aporto na semiótica não porque seja uma teoria melhor ou a mais completa que as outras, mas porque é a teoria que conheço um pouco melhor. Esclareço a vocês que o objeto de estudo da semiótica é o texto, mais precisamente como se constroem os sentidos do texto, procurando descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz, como afirma a professora Diana Luz Pessoa de Barros.

Destaco que os textos são formados por dois planos que se pressupõem: um conteúdo, que é de ordem cognitiva, e uma expressão, que é de ordem sensorial, e é manifestada por uma linguagem qualquer. Nos textos comuns, nossa atenção volta-se para o conteúdo e pouco damos atenção ao modo como esse conteúdo é manifestado. Nos textos literários, a expressão veicula o conteúdo de maneira original, criativa, inusitada, poética, chegando, em muitos textos, a ser constitutiva do sentido. A formação do leitor literário implica, portanto, que a leitura não se restrinja tão somente ao plano do conteúdo, mas também ao plano da expressão.

Vamos ler agora dois textos. Um do psicólogo cubano Emilio Mira y Lopes e outro de Camões.

QUE É O AMOR

[…] o Amor é, por definição, um processo complexo e contraditório, que não pode ser situado nem limitado concretamente em um determinado setor conceitual. Sua energia não somente é a maior e a mais variada de quantas possamos imaginar, mas, além disso, ainda aspira, engloba e incorpora, por uma “absorção” sui generis, as de seus companheiros de morada. Por isso, talvez, seja a única força capaz de aumentar na razão direta dos obstáculos ou resistências que se lhe opõem. Por isso, também, triunfa em definitivo sobre seus adversários mesmo quando esses se unem em consórcio para anulá-lo. Entretanto, não há exemplo de outro ser que seja capaz de revelar maior delicadeza e sensibiidade, maior variabilidade e instabilidade. Delicado e forte, puro e perverso, terno e cruel, audaz e tímido, sincero e teatral… não há contradição e antinomia que não possa ser encontrada na história do Amor.

MIRA Y LOPES, Emilio. Quatro gigantes da alma: o medo, a ira, o amor, o dever. 24a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. [p. 123]

Amor é um fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;

É um andar solitário por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Os dois textos dizem praticamente a mesma coisa: tentam definir o que é amor, mas afirmam que não se pode defini-lo porque é um sentimento contraditório a si mesmo. Se no plano do conteúdo eles são bastante semelhantes, no plano da expressão são bastante diferentes. No texto de Mira y Lopes a linguagem é apenas veiculadora do conteúdo, o que não ocorre no soneto camoniano. Observem os recursos linguísticos expressivos do soneto de Camões, nos estratos:

sonoro: o ritmo, as rimas, as assonâncias e aliterações;

sintático: as repetições no início dos versos, a anáfora. (É…, É…, É…)

semântico: as transferências de significado, metáforas (amor é um fogo); a aproximação de expressões que se opõem pelo sentido, os paradoxos,  (contentamento / descontente, dor que desatina sem doer)

A leitura do poema revela que o texto está construído a partir de um tema ou tópico discursivo, aquilo de que se fala no texto, apresentado já no início: AMOR. O tema é o que garante a organização do texto. Um referente (amor) é introduzido no primeiro verso e retomado elipticamente nos dez versos subsequentes ao primeiro, configurando onze definições diferentes para um mesmo objeto de discurso, o amor.

A progressão textual decorre de uma renovação constante na articulação tópico / comentário: mantém-se o tópico (amor), mas a informação nova (o comentário) é renovada. Apesar de ocorrer uma nova definição de amor em cada retomada, pode-se observar que elas apresentam algo comum: as definições são apresentadas na forma de um paradoxo.

As onze definições apresentam uma estrutura em que há uma contradição aparente, uma vez que a primeira parte do paradoxo remete ao mundo inteligível ou racional, enquanto a segunda, ao mundo sensível ou emocional, por isso pode-se saber racionalmente que o amor dói, mas no nível sensível ou interior não se sente essa dor.

III- O percurso gerativo do sentido

A semiótica concebe que os sentidos do texto decorrem de um percurso que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. A esse percurso ela dá o nome de percurso gerativo do sentido. O nível mais profundo, chamado de fundamental, apresenta uma oposição de semântica de base, por exemplo vida vs. morte, natureza vs. cultura, identidade vs. alteridade. No nível intermediário, chamado de narrativo, os valores presentes no nível fundamental são assumidos por sujeitos que sofrem transformações por ações de outros sujeitos na busca de objetos investidos de valor. No nível discursivo, o mais superficial e mais concreto, instalam-se as categorias da enunciação (eu – aqui – agora) e os temas e as figuras. É importante lembrar que os níveis do percurso gerativo do sentido dizem respeito ao plano do conteúdo (num primeiro momento, a semiótica desconsidera o plano da expressão). Lembro ainda que cada nível do percurso gerativo representa um enriquecimento de sentido. Normalmente fazemos a leitura dos textos começando pelo mais concreto e complexo, o nível discursivo, e vamos descendo às estruturas mais profundas. Se, para a semiótica, a construção do sentido dos textos obedece a um percurso ascendente, que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, na análise, é comum que se observe um percurso descendente, indo do mais complexo e concreto ao mais simples e abstrato.

IV- Textos temáticos e figurativos

Começo explicando o que são temas e figuras. Para isso, temos de retomar algo que nossos professores de português nos ensinavam no ensino fundamental. Há substantivos concretos e abstratos. Melhor seria dizer há palavras concretas e palavras abstratas, porque a oposição /concreto vs. abstrato/ não é exclusiva de substantivos. Há adjetivos concretos (verde, vermelho, sujo, cheio) e abstratos (arrependido, desiludido, decepcionado), há verbos concretos (nadar, pular, escrever) e abstratos (raciocinar, imaginar, meditar).

Dizemos que uma palavra é concreta quando remete a algo presente no mundo natural ou imaginado (galinha, ovo, fogão, chaminé, cozinha, bruxa, fada, saci etc.). Chamamos de temas as palavras abstratas com as quais exprimimos conceitos (ciúme, vingança, inveja, justiça, feminilidade). Os textos em que predominam as figuras são chamados de figurativos. Aqueles em que a figuração é esparsa são chamados de temáticos. O que define se um texto é temático ou figurativo é dominância de temas ou figuras. Os textos científicos e filosóficos são predominantemente temáticos; os textos literários são figurativos. Todo texto se constrói a partir de temas, que podem estar revestidos por figuras, dando concretude ao tema. Compete ao leitor “descobrir” que temas estão revestidos pelas figuras.

Vou usar um trecho de conhecido texto literário para ilustrar o que afirmei. Todos vocês conhecem o conto Uma galinha, de Clarice Lispector. Leiamos seu início.

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém. Ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé.

Nesse conto, fala-se de uma galinha que ia ser morta para servir de almoço à família no domingo. No momento em que ia ser capturada, a galinha foge e bota um ovo, o que faz com que a família desista da ideia de sacrificá-la. Essa é a história narrada. As figuras presentes no texto nos levarão a ler o conto não como a história de uma galinha. Vejam algumas dessas figuras se encadeiam: canto da cozinha, nascida para a maternidade, velha mãe, jovem parturiente, rainha da casa, deu à luz, revestindo um mesmo tema, no caso o da maternidade, da feminilidade. É disso que o conto fala e não de galinhas.  

V- A ENUNCIAÇÃO

A enunciação é sempre pressuposta pelo enunciado. Se há um dito, o enunciado, está pressuposto que houve o ato de dizer, a enunciação. Num enunciado com A Terra é redonda está pressuposto um sujeito que disse A Terra é redonda. Ocorre que as marcas linguísticas desse sujeito foram apagadas do enunciado, diferentemente do que ocorre em eu afirmo que a Terra é redonda, em que a marca linguística do enunciador está presente projetada no enunciado por meio do pronome eu.

Se há as duas opções, explicitar ou apagar as marcas linguísticas do enunciador no enunciado, o que determina que se use uma ou outra? Quando as marcas linguísticas do enunciador estão apagadas no enunciado, o efeito de sentido é o de objetividade, o que ocorre, por exemplo, na literatura naturalista cujo modelo é o de objetividade, próprio dos textos científicos. Já nos textos românticos, é comum explicitar as marcas linguísticas do enunciador no enunciado, na busca de um sentido e subjetividade, como se observa nesses versos de Álvares de Azevedo (Eu deixo a vida como deixa o tédio / Se eu morresse amanhã). 

VI- O açúcar

Exemplifico agora com a leitura do poema O açúcar de Ferreira Gullar

Numa abordagem com base na semiótica, o sentido do texto, como afirmei, resulta de percurso que vai de um nível mais abstrato e profundo a um nível mais concreto e superficial. Na leitura que se faz dos textos, costumamos partir do que é mais concreto e superficial, o chamado nível discursivo, para chegar ao que ele tem de mais abstrato.

1ª etapa: análise do nível discursivo com o levantamento dos temas e figuras e das categorias da enunciação (pessoa, espaço e tempo)

2ª etapa: análise do nível narrativo: percurso e transformações de um sujeito por ação de outros sujeitos.

3ª etapa: identificação da oposição semântica de base sobre a qual se constrói o sentido texto e verificação de qual delas é valorizado positivamente.

Se fizermos a análise de O açúcar seguindo o percurso sugerido, teremos o que segue.

1ª etapa: nível discursivo

No nível discursivo, em seu componente semântico, ou seja, temas de figuras, já temos algumas pistas que orientam a construção do sentido.

O poema é um texto figurativo, ou seja, em seu nível discursivo estão presentes palavras concretas que remetem a conceitos, o tema ou os temas, de que trata. Levantadas as figuras e os temas que elas recobrem, passamos à sintaxe, verificando as categorias da enunciação (pessoa, espaço e tempo). 

Para ilustrar essa primeira etapa, começaremos pelas figuras, agrupando-as de acordo com os sentidos a que remetem e assinalando os sentidos a que se opõem.

Em O açúcar, as figuras podem ser agrupadas em pares que remetem a algumas oposições.

ldoce, açúcar, adoçar, açucareiro, afável: remetem a /doçura/, que se opõe a /amargura/ (vida amarga)

branco, açúcar, água: remetem a /claridade/, que se opõe a /escuridão/ (usinas escuras)

usina, cana, canaviais rementem a /ruralidade/, que se opõem a /urbanidade/(Ipanema).

Essas oposições são apenas alguns exemplos. Poderão, evidentemente, ser apontadas outras.

As figuras dão concretude aos temas, que são abstratos, pois fazem referências a ideias, conceitos. De certa forma, as figuras transformam os temas em seres, como se faz quando se usa, por exemplo, a figura de uma balança (concreto) para representar a justiça (abstrato).

O agrupamento das figuras em função dos temas que revestem nos dá a primeira chave para a leitura do texto, já que por meio delas se manifestam os valores, crenças e ideologias, permitindo que se perceba a oposição de sentido sobre o qual se constrói o poema, por exemplo, /vida vs. morte/; /natureza vs. cultura/; /identidade vs. alteridade/ etc.

Feito o levantamento das figuras e dos temas, deve-se observar as categorias da enunciação (pessoa, tempo e espaço). Seguem alguns breves comentários sobre isso.

Há basicamente, quanto à pessoa, dois tipos de texto. Aqueles em que há as marcas linguísticas do enunciador estão projetadas no texto (os textos em 1ª. pessoa), e aqueles em que essas marcas foram omitidas (os textos em 3ª pessoa). Textos em 1ª e 3ª pessoa, como vimos, produzem efeitos de sentido diferentes. Nos textos em 1ª pessoa, o efeito de sentido é de subjetividade; nos em 3ª, de objetividade.

Quanto à categoria pessoa, há, no poema, um narrador instalado no texto, como se depreende pelas formas linguísticas de primeira pessoa, que destacamos abaixo:

O branco açúcar que adoçará meu café

não foi produzido por mim

Vejo-o puro

com que adoço meu café esta manhã em Ipanema

Trata-se de um texto com efeito de sentido de subjetividade. O que se tem nele não é um discurso objetivo, imparcial, mas a visão pessoal do eu-lírico.

Nos textos, o espaço é representado principalmente por advérbios e locuções adverbiais de lugar. Em O açúcar, o espaço é o aqui, onde está o enunciador no momento que enuncia. Esse aqui no poema é Ipanema (Rio de Janeiro), que se opõe a um espaço fora da enunciação, um , representado por figuras como Pernambuco, usinas, canaviais

Nos textos, o tempo é representado pelos verbos e por advérbios e locuções adverbiais de tempo. Em O açúcar, o tempo é o agora (presente): Vejo-o puro. Em relação a esse presente, temos dois tempos não-concomitantes a ele: um futuro (O branco açúcar que adoçará meu café) e um passado (Este açúcar era cana /e veio dos canaviais extensos).

2ª etapa: nível narrativo

Entre o nível mais concreto e superficial, o nível discursivo, e o nível mais profundo e abstrato, os textos apresentam um nível intermediário denominado narrativo. Em O açúcar, temos o percurso de um sujeito (o açúcar) que é resultado de transformações decorrentes de mudanças de estado: de cana passa a ser açúcar pela manipulação de sujeitos figurativizados por homens de vida amarga e dura, que são dotados de um saber-fazer, ou seja, de uma competência (o saber) e de uma performance (o fazer).

Em O açúcar, como vimos, o enunciador (o autor implícito) delega voz a um eu instalado no texto, o narrador, que fala sobre as desigualdades sociais entre aqueles que consomem e aqueles que produzem. Os que consomem são figurativizados por aqueles que vivem nas cidades em bairros ricos (Ipanema) e que podem desfrutar de sua doçura; os que produzem são figurativizados por aqueles que vivem em lugares distantes, onde não há hospital / nem escola / homens que não sabem ler e morrem de fome / aos 27 anos.

3ª etapa: nível fundamental

A análise feita dos níveis discursivo e narrativo nos permite identificar a oposição de base sobre a qual se constrói o poema. Em O açúcar essa oposição semântica é /doçura vs. amargura/. Dos termos dessa oposição de base, amargura é o valor eufórico, isto é, valorizado positivamente, enquanto doçura é o valor disfórico, ou seja, valorizado negativamente.  O que o poema exalta não é a doçura, a pureza, o afável, o branco, o puro, mas o amargo, o duro, o escuro, ou seja, a vida amarga e dura daqueles homens que, em usinas escuras de lugares distantes, produziram o açúcar que adoça o café das pessoas das cidades. Em suma, o tema do poema é a desigualdade social.

Caminhando para o final, não poderia deixar de fazer uma observação importante: quando afirmei que a amargura é o termo valorizado positivamente e a doçura negativamente estou me referindo a esse poema. Em outros, pode ser que a doçura seja o valor positivo e a amargura, o negativo. Enfim, cada texto tem sua chave de leitura. Lembro ainda que a formação do leitor literário envolve outras coisas, além de detectar os temas revestidos pelas figuras. É necessário ainda perceber as relações intertextuais e interdiscursivas que os textos literários guardam entre si. O discurso da obra Dom Quixote, de Cervantes, se constrói em oposição ao discurso das novelas de cavalaria; o poema No meio do caminho tinha uma pedra, se constrói numa relação intertextual com o soneto Nel mezzo del camin, de Olavo Bilac, como se observa a partir do título, e também em relação ao poema Divina comédia, de Dante Alighieri. A percepção das relações intertextuais e interdiscursivas decorre da leitura de textos literários, por isso falei que a formação do leitor literário é processo contínuo e não acabado.

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