Língua e decreto

Tempo de leitura: 3 minutos

 

Projeto de Lei (PLS 332/2017) do senador Roberto Requião (MDB) propõe acabar com o “Vossa Excelência” e todos os outros pronomes de tratamento direcionados às autoridades, com exceção das palavras “senhor” e “senhora”. No rol dos excluídos, está também o “doutor”, “doutora”.
Neste post, atenho-me ao uso dos substantivos doutor, doutora.  Essa palavra provém do latim: doctor, oris, que, por sua vez, liga-se ao verbo docere, cujo sentido é ensinar. Isso é bem claro quando se observa em português a palavra docente, também procedente do latim: docens-entis, particípio presente do verbo docere.
Já perceberam que doctor (doutor) na sua origem está ligado à atividade docente, ou seja, ao ensino. Doutor é aquele que está habilitado a ensinar. A língua é viva e outros sentidos vão se agregando às palavras. Mas uma coisa é fundamental ter em mente: a língua muda em decorrência que os falantes fazem dela. Pela boca do povo criam-se palavras novas e atribuem-se significados novos a palavras que já existiam.
Se vocês forem ao dicionário, o Houaiss, por exemplo, lá encontrarão nada menos que 18 acepções para esse substantivo, inclusive a acepção que pessoas humildes usam para se dirigir a outras que aparentam ser de uma classe mais elevada. É comum flanelinhas dirigirem-se aos proprietários de veículos chamando-os por doutor.
Tenho visto nas redes sociais pessoas argumentarem que só se aplica o termo doutor àquele que defendeu tese de doutoramento em universidade. Santa bobagem, Batman!!! Esse é apenas um dos usos dessa palavra. Costumamos nos dirigir a médicos chamando-os de doutor, mesmo que não tenham conquistado esse grau na universidade. Para muita gente, doutor é ainda sinônimo de médico. Ouço com alguma frequência pessoas mais velhas dizendo que o doutor mandou tomar tal remédio. O jogador de futebol Sócrates, que foi capitão da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1982, era chamado de Doutor Sócrates, por ser formado em medicina.
O uso de doutor estendeu-se a profissionais de outras áreas, como forma de tratamento cortês. Assim, é costume também chamarmos dentistas e advogados de doutor. Por outro lado, não é comum chamar um engenheiro de doutor.
Nas salas de aula, alunos não se dirigem a professores doutores, chamando-os de doutor. É mais frequente o uso de professor(a), de senhor(a) e, atualmente, observo que é cada vez mais usual chamar o professor pelo nome ou sobrenome, sem qualquer tratamento que o preceda, sem que isso se configure descortesia, ou falta de respeito
Volto ao ponto de partida. Entendo que o senador Requião pretende com seu projeto de lei atenuar o fosso que existe entre autoridades e o povo, particularmente os mais humildes. Entendo que queira afastar de órgãos públicos o ranço de autoritarismo de alguns funcionários do estado.  No entanto desigualdade social e autoritarismo não se extinguem alterando a forma de tratamento. Os fieis do mundo católico continuarão a dirigir-se ao Papa  por Santidade, as pessoas continuarão a chamar os médicos de doutor. Chamar o Papa de Santidade não o afasta dos fiéis. Bento XVI é um exemplo disso.
Minha posição, já defendida em outro post deste blogue, é contrária a que se legisle em termos de língua, a  que se obrigue ou se proíba os falantes de usar certas palavras. A forma de tratamento a ser usada acaba se regulamentando pelo contexto. No meu tempo de criança, eu era obrigado a me dirigir a meus pais por senhor e senhora. Hoje, vejo crianças que dirigem-se a seus pais na maior informalidade possível chamando-os de você sem que isso se configure em desrespeito.
A meu ver, o projeto do senador Requião é inócuo e vai se juntar a outros como o do deputado Aldo Rebelo, que queria proibir o uso de palavras estrangeiras em português, ou de José Carlos Arruda, que, quando era governador do Distrito Federal, quis proibir o uso do gerúndio por decreto.
Nesses tempos sombrios em que vivemos, fico preocupado que emane lá de cima um decreto presidencial impondo-nos goela a baixo o uso da mesóclise.

2 Comentários


  1. O douto senhor está coberto de razão, nada como ouvir o mestre ! É preciso enviar esse texto à S.Exa o Nobre Senador Requião, não?

    Responder

    1. Sim. Mania de pôr decreto para tudo. Leis que não acabam mais. É o paraíso dos advogados. Enquanto isso a Constituição do Reino Unido continua a mesma há séculos e com pouquíssimos artigos, que dá até para um cidadão comum sabê-lá de cor.

      Responder

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.